PRENDER PARA ENRIQUECER: O NEGÓCIO ESCONDIDO POR TRÁS DOS DETIDOS EM PRISÃO PREVENTIVA

Como é que um país com tanta juventude, que constitui a maioria da população, está a encher as cadeias e não as salas de aula ou os postos de trabalho?
Quem são esses milhares de detidos em prisão preventiva?
São criminosos perigosos ou vítimas de um sistema que lucra com a sua detenção?
Que futuro estamos a condenar antes mesmo de ser julgado?
Angola tem hoje 24 068 reclusos para uma capacidade oficial de 22 554 vagas. Mas o número mais grave não está na superlotação — está no abuso da prisão preventiva: 48,5 % da população prisional (11 664 pessoas) está presa sem ter sido julgada. Em muitos casos, os detidos não conhecem sequer o seu advogado, nem sabem quando terão audiência. A presunção de inocência tornou-se, na prática, um conceito decorativo.
O impacto disto vai muito além dos muros das cadeias. Quando milhares de jovens são privados de liberdade antes de serem julgados, está-se a condenar um país inteiro ao retrocesso social, económico e moral. Não é justiça: é castigo preventivo. É prisão sem sentença. É sistema sem alma.
O Ministério que lucra com cada recluso
Cada preso custa ao Estado cerca de 50 dólares por dia. Isso representa 1.500 dólares por mês e 18.250 dólares por ano, por pessoa. Multiplicado pelos mais de 24 mil presos, o Estado angolano gasta mais de 1,2 milhões de dólares por dia em despesas prisionais.
Mas, o incrível, é que essa verba não chega, na totalidade, aos reclusos.
Quem controla essas verbas?
O Ministério do Interior.
E é aí que mora o problema. Quanto mais presos, mais orçamento. Quanto mais orçamento, mais oportunidades de desvio.
Quem está a enriquecer com os detidos em prisão preventiva?
Um sistema que mata — por dentro
No Estabelecimento Penitenciário de Viana (EPV), a maior cadeia de Luanda, não há água canalizada. O abastecimento depende da compra de camiões-cisterna, pagos com dinheiro público. Quem controla a compra? Quem fiscaliza os contratos? Por que razão nunca se resolveu a canalização de água numa cadeia que recebe milhares de presos por ano e, por sinal, é a actual cadeia central de Angola?
A falta de água e higiene é uma das causas directas de doenças evitáveis.
No EPV e no Hospital-Prisão São Paulo, morrem reclusos por falta de medicamentos, exames e atendimento especializado.
As doenças são provocadas pelas más condições sanitárias e pela alimentação adulterada: sacos de arroz, sacos de fuba de milho, caixas de frango, caixas de massa, óleo e peixe são desviados antes de chegarem ao prato do recluso.
Cantinas privadas, lucros paralelos
As cadeias têm cantinas com gestão privada, dirigidas pelos próprios gestores das prisões ou seus aliados.
No EPV, em Calomboloca e no Hospital-Prisão São Paulo, estas cantinas movimentam milhões de kwanzas por dia, vendendo aos reclusos e familiares produtos de primeira necessidade como água, sabão, bolachas, papel higiénico e sumos — muitos dos quais o Estado já forneceu. E isso acontece a céu aberto.
Este comércio paralelo faz concorrência desleal ao que é público e transforma a cadeia num negócio. Os familiares, mesmo sem recursos, são forçados a comprar na cantina da cadeia, não podendo entregar directamente os bens ao detido ou ao condenado.
É o negócio da sobrevivência, transformado em máquina de extorsão institucional.
Segurança e silêncio cúmplice
Dentro das cadeias funciona a área de Segurança e Ordem Interna, com elementos destacados da Polícia Nacional e do Serviço de Investigação Criminal (SIC). Há ainda uma secção especial chamada Trabalho Operativo Secreto (TOS), cuja função seria vigiar actividades ilícitas, planos de fuga ou tráfico interno.
Mas, estranhamente, o TOS nunca denuncia os desvios de comida, os esquemas das cantinas nem os abusos dos próprios funcionários prisionais.
Há uma espécie de pacto de silêncio institucionalizado. O sistema não quer ser reformado, porque a corrupção garante lucros.
O silêncio dos que deviam intervir
Há um silêncio institucional que protege e perpetua tudo isto.
Os procuradores da República conhecem os casos de excesso de prisão preventiva, sabem que há cidadãos detidos há anos sem julgamento, mas não promovem habeas corpus nem exigem celeridade processual. Limitam-se a empurrar papéis, deixando vidas suspensas num limbo jurídico. Na Comarca Central de Luanda (CCL) e no EPV, existem detidos com mais de sete anos encarcerados, sem julgamento (tenho nomes).
Os elementos dos órgãos de Inteligência, como o SINSE e outras estruturas, recebem relatórios sobre o que o Estado gasta com bens alimentares e sobre o que se passa nas cadeias, incluindo esquemas das cantinas e os casos de morte por negligência médica. Mas não levantam qualquer alarme público nem promovem investigações internas sérias. A inércia parece-lhes mais conveniente do que o confronto com colegas poderosos.
Os dirigentes dos órgãos de Defesa e Segurança — oficiais superiores, inspectores, comandantes — fazem visitas aos estabelecimentos prisionais, lêem relatórios e conhecem a realidade por dentro. E, no entanto, não denunciam as ilegalidades nem travam os abusos. Tornaram-se parte da engrenagem.
Todos eles sabem.
Têm informação.
Têm poder.
Mas calam-se.
E, neste contexto, o silêncio não é neutralidade — é cumplicidade activa.
Os Blocos A, B, C e D como barómetro de Luanda
Apesar de os dados oficiais indicarem ligeira maioria de condenados a nível nacional, no EPV a realidade é inversa: há mais detidos em prisão preventiva do que condenados.
Os Blocos A, B, C e D provam isso. Tive acesso a relatórios, alguns até forjados propositadamente.
Nestes blocos, concentra-se o maior número de jovens ainda à espera de julgamento. É no “Interior Penal” (Blocos A, B e C) onde a “máfia” ganha flores todos os dias. Muitos ali estão há mais de quatro anos sem ver um juiz. E muitos chegam a emagrecer, com fome, os chamados “bibis”, até desaparecerem sem nunca conhecer um juiz.
Prisão sem defesa: o abandono legal
A esmagadora maioria dos detidos em prisão preventiva não tem assistência jurídica efectiva. Não tem dinheiro para pagar advogado, e os oficiosos raramente os visitam. Muitos não sabem por que estão presos, nem quando será a próxima audiência. Estão sozinhos.
O sistema nega-lhes o direito mais básico: ser ouvido num prazo razoável. E isso, por si só, já deveria ser um escândalo nacional, se fóssemos um país normal.
O silêncio das instituições religiosas e da sociedade civil
Há igrejas e organizações que distribuem alimentos ou oferecem consolo espiritual. Mas nenhuma denuncia publicamente as injustiças estruturais do sistema prisional. Pelo contrário, vão dar missas e cultos aos reclusos, com o sentido de dizer que é Deus que permite que eles estejam presos e que se estivessem em liberdade podiam já estar mortos. Vão, inclusive, buscar textos na Bíblia Sagrada para sustentar as suas teorias. Fazem uma lavagem cerebral aos presos para proteger as injustiças da cadeia; para que eles fiquem calmos; para que não criem tumultos. A maior parte das denominações religiosas vai às cadeias recrutar novos inquilinos para o dízimo. No fundo, as “igrejas” vão às cadeias conquistar almas para também se enriquecerem com ofertas e dízimos no momento pós-cadeia. Quando o recluso é solto, tem de ir agradecer à igreja que fez o milagre da liberdade.
Faltam vozes proféticas que levantem a mão para perguntar: por que razão um inocente continua preso? Por que razão os filhos dos pobres apodrecem nas celas sem culpa formada?
Prisões: escola da exclusão e da reincidência
Prender preventivamente deveria ser excepção. Em Angola, virou regra. E o resultado é um ciclo vicioso: jovens detidos injustamente, abandonados pelo sistema, saem revoltados e sem rumo, sem trabalho, sem reintegração, acabam por regressar à prisão — alimentando novamente a máquina que lucra com eles.
O que hoje se vende como “segurança” é, na verdade, uma fábrica de exclusão.
O que vi nos olhos dos meus companheiros
Estive preso. Vi a dor. Vi a revolta.
Mas vi também a esperança adiada, nos olhos de jovens que não tiveram defesa nem julgamento.
Muitos queriam apenas trabalhar, estudar, ser alguém. Mas alguém — lá fora — precisa que eles continuem dentro. Porque cada preso é uma oportunidade de facturar.
Eis o verdadeiro rosto da prisão preventiva em Angola. Eis por que é urgente reformar, expor e responsabilizar.
Este é apenas o começo.
Nos próximos artigos, vou aprofundar o que se passa nos outros blocos prisionais, revelar mais casos de detidos em prisão preventiva em excesso de prazo, e identificar os principais beneficiários do dinheiro público que entra e desaparece nas cadeias angolanas.
Darei particular atenção ao Hospital-Prisão São Paulo, uma unidade que recebe detidos e condenados de todas as províncias do país — e onde também estive. Durante o tempo que lá permaneci, presenciei e registei o número de mortes evitáveis, causadas por negligência médica, falta de medicamentos e alimentação imprópria. A sua função nacional transforma-o num centro nevrálgico de tudo o que está errado no sistema penitenciário angolano.
A verdade precisa de ser dita, bloco por bloco, rosto por rosto, cela por cela, caserna por caserna.
Porque há demasiada gente a lucrar com o silêncio — e com a prisão dos inocentes.
Uma pergunta final que se impõe
O Presidente da República, João Lourenço, sabe de tudo isto ou não sabe?
Se não sabe, é grave.
Se sabe, é ainda mais grave.
Carlos Alberto
Jornalista e Director do Portal “A DENÚNCIA”
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