MPLA “CAPTUROU O ESTADO E NÃO É POSSÍVEL FALAR NUMA CNE INDEPENDENTE”

A reeleição do juiz Manuel Pereira da Silva para o cargo de Presidente da Comissão Nacional Eleitoral de Angola está a ser contestada pela sociedade civil e pela UNITA, que fala numa escolha “eivada de ilegalidades”. Já o partido no poder, MPLA, afirma que esta escolha resulta “da lei”. António Ventura, jurista e director da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Angola, reconhece que há motivos para considerar a reeleição do Presidente da CNE ilegal.
Há motivos para considerar ilegal a reeleição do juiz Manuel Pereira da Silva para o cargo de Presidente da Comissão Nacional Eleitoral de Angola?
Sim, há motivos, em função do contexto em que são preparados os processos eleitorais em Angola. Quem está no poder, há todo este tempo, controla todos os instrumentos do poder e, consequentemente, a Comissão Eleitoral e as comissões provinciais. E, tendo a maioria no Parlamento, usa e abusa dessa maioria para introduzir leis cuja constitucionalidade é questionável e, muitas vezes, até para exercer maior controlo sobre a Comissão Nacional Eleitoral. Infelizmente, temos uma comissão eleitoral cujo modelo resulta de acordos políticos firmados em 1992. A representação é maioritariamente partidária. É certo que tivemos uma ligeira alteração, porque o número de votos e de assentos aumentou para a oposição, concretamente para a UNITA. No entanto, o MPLA entende que esta alteração substancial não pode ter impacto sobre o número de comissários indicados pelo partido e, por isso, introduziu um mecanismo de indicação de comissários, repartindo – com base em cálculos que só a maioria consegue explicar – a possibilidade de a UNITA indicar mais comissários, atribuindo essa mesma prerrogativa aos outros partidos da oposição.
Refere-se ao processo de concurso para a eleição do Presidente da CNE de Angola?
Não, refiro-me ainda à composição da Comissão Eleitoral. Todavia, realizou-se um concurso para o provimento do cargo de presidente da Comissão Nacional Eleitoral, liderado pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial, no qual foram anunciados os requisitos para o efeito. Propositadamente – esse é o nosso entendimento – foram introduzidos requisitos que já se sabia que iriam favorecer o actual Presidente da CNE.
Um concurso feito para beneficiar o Presidente da CNE?
Sim. Um dos requisitos, por exemplo, era o de que o candidato, para ser eleito, teria de ter experiência em processos eleitorais durante um longo período.
O que é o caso do juiz Manuel Pereira da Silva?
Exactamente. Ora, no nosso contexto legal, se o juiz ou a Comissão Nacional Eleitoral deve ser liderada por um juiz, não se pode exigir do juiz experiência em gestão de processos eleitorais. Quando o legislador optou por propor um juiz para liderar a Comissão Nacional Eleitoral, fê-lo porque entendeu que essa pessoa deveria possuir alguma independência, imparcialidade e uma actuação que não fosse permanentemente questionada no contexto das disputas políticas.
A UNITA, o principal partido da oposição em Angola, apresentou uma providência cautelar para tentar travar a tomada de posse do presidente da CNE, que, entretanto, foi indeferida pelo Tribunal Constitucional. Essa providência não tem fundamento jurídico?
A providência tem fundamento jurídico. O que sucede é que o Tribunal Constitucional, com todo o respeito pelos juízes que o integram, dificilmente decide a favor dos partidos da oposição. E, nesse quesito, a jurisprudência tem sido clara: o Tribunal Constitucional não “andou” bem.
O presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais e Jurídicos do Parlamento, António Paulo, do MPLA, afirmou que a escolha do presidente da Comissão Nacional Eleitoral e a tomada de posse pela Assembleia Nacional resultam da lei. O que é que isto quer dizer?
Resulta da lei, até aí não há dúvida. Mas trata-se de uma interpretação casuística e oportunista por parte dos deputados do MPLA. Porque se temos um processo que, desde o início, foi viciado para favorecer o actual presidente da CNE, então, mesmo que seja legal, não é legítimo. Este processo está viciado desde o princípio. Na altura, a sociedade civil já tinha questionado os requisitos que haviam sido propositadamente colocados para beneficiar o actual presidente da CNE. A contestação não é recente; remonta ao concurso de 2019 e às últimas eleições gerais. A primeira eleição também já tinha sido questionada, inclusive com processos em tribunal.
O juiz Manuel Pereira da Silva, que preside à Comissão Nacional Eleitoral desde 19 de Fevereiro de 2020, viu a sua idoneidade ser contestada. Considera que ele não reúne condições éticas nem legais para exercer o cargo?
Do ponto de vista da experiência eleitoral, acredito que, ao longo dos anos em que participou nas comissões provinciais e na Comissão Nacional, tenha adquirido – provavelmente – experiência técnica em processos eleitorais. No que toca à integridade, independência e imparcialidade, essas são, evidentemente, questionáveis. Nas últimas eleições, realizadas em 2022, o então presidente da CNE tomou decisões e emitiu directivas – muitas das quais contrárias à lei – sobretudo no que respeita à observação eleitoral, com o objectivo de impedir os cidadãos de exercer controlo sobre o processo eleitoral, de forma a garantir que este fosse justo e transparente.
Essa realidade reforça a ideia de que a CNE não é independente e que actua como uma extensão dos interesses do partido no poder?
Estamos agora a assistir a uma tentativa de alteração da Lei Orgânica das Eleições Gerais, introduzindo pontos que já resultaram de decisões do presidente da Comissão Nacional Eleitoral. Por exemplo, pretende-se, mais uma vez, aumentar a distância entre a contagem e a publicação das actas nos locais de eleição.
As actas que, até agora, permitiam à sociedade civil acompanhar o processo eleitoral…
Exactamente. O controlo genérico por parte da sociedade civil, ao nível dos locais de votação. E é precisamente esse controlo que se pretende eliminar da lei, impedindo os cidadãos de permanecerem nos locais para verificar e publicar as actas. A intenção é obrigá-los a esperar em casa, em frente à televisão, pela divulgação dos resultados.
A UNITA apela à manifestação. Acredita que essas manifestações irão ocorrer?
Com certeza, é provável que ocorram. No entanto, o Governo controla de forma autoritária todas as forças de segurança – polícia, forças armadas, serviços de inteligência – e, obviamente, irá utilizar todos os meios ao seu dispor para controlar, perseguir e, em última instância, reprimir essas manifestações, com o apoio dos meios de comunicação social que o servirão. É necessário afirmar com clareza que vivemos sob um regime autoritário, pois o partido no poder capturou todas as estruturas do Estado, e não é possível falar em eleições livres, justas, pacíficas, transparentes e, naturalmente, numa Comissão Nacional Eleitoral que se queira independente e imparcial.