EM ANGOLA: RECONCILIAÇÃO E CONSTITUIÇÃO

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A 4 de Abril, comemorou-se o Dia da Paz e Reconciliação em Angola. É verdade que já ninguém anda aos tiros e que o confronto físico foi substituído pelas agressões verbais, nomeadamente nas redes sociais, e, como em todos os países civilizados, pelas disputas jurídicas e judiciais. Infelizmente, porém, continua a prevalecer um clima latente de pouca conciliação nacional.

Haverá certamente várias causas para esse sentimento, umas políticas, outras (muitas) económicas, outras ainda históricas e psicológicas. Mas há também alguns símbolos fundamentais e formais que podem contribuir para a reconciliação e que têm sido desperdiçados.

Um destes símbolos – talvez o mais importante do ponto de vista da estrutura do Estado – é a Constituição. Enquanto lei suprema de um país, a Constituição deve corresponder a um consenso alargado das forças políticas e sociais. Não requer um suporte unânime, que aliás seria impossível, mas a população e as forças principais devem rever-se nela e obedecer-lhe com convicção. Quando a lei suprema não é consensual, o país vai-se tornando ingovernável.

A actual versão da Constituição, que foi aprovada em 2010 e revista em 2021, obedeceu formalmente às maiorias exigidas e, portanto, tem toda a legitimidade legal, uma vez que seguiu a chamada regra do reconhecimento (Hart), a qual estabelece os critérios de validade das normas jurídicas. O problema situa-se ao nível da convicção de obediência e da aceitação social dessa norma suprema.

Recordemos a história constitucional angolana: em 2010, o segundo maior partido da oposição, a UNITA, retirou-se da Assembleia Nacional na hora de votar a Constituição; em 2021, aquando da revisão, a UNITA absteve-se. Isto quer dizer que uma das partes do conflito armado que devastou a país nunca aceitou a Constituição de 2010. Ora, convém notar que a representatividade eleitoral da UNITA foi, em 2022, de cerca de 43,95%. Este valor pode subir ou descer, mas é sempre assinalável. Há assim uma disfunção significativa entre o sentir de uma boa parte da comunidade política e a norma legal suprema.

A solução é simples: alterar a Constituição de forma a fazê-la corresponder, em termos gerais, ao sentir das forças políticas e da comunidade.

Poder-se-á argumentar que a Constituição não resolve os problemas do país nem as falhas da governação. Nessa perspectiva, não valeria a pena perder tempo com “papéis”, devendo-se concentrar energias apenas na acção prática, o que retiraria interesse à revisão constitucional. De facto, é verdade que mesmo uma Constituição elaborada com ampla discussão e cuidado para evitar demagogos e desvios, como a americana, não evitou uma sangrenta guerra civil, e agora, na óptica de muitos, a eleição de um demagogo que ambiciona ter poderes imperiais. O mesmo terá acontecido com a velha Constituição da República Romana, tão bem descrita por Cícero, que tentava equilibrar os vários interesses da comunidade romana, com elementos mistos de monarquia, aristocracia e democracia. Também essa Constituição soçobrou à força e subtileza do imperador Augusto.

Se é verdade que a Constituição não resolve os problemas do povo (Agostinho Neto), o certo é que é ela o símbolo máximo da vontade popular. É nesse sentido que acreditamos que qualquer reconciliação duradoura necessita de uma nova e consensual Constituição.

O defeito essencial que é apontado à presente Constituição é a concentração e centralização excessiva de poderes. Não há concorrência no exercício do poder, nem ao nível do poder central entre os vários órgãos, nem ao nível das relações entre o centro e a periferia. Num resumo simplista, tudo se decide no Palácio Presidencial de Luanda. Alguns alegam que tal se deve às tradições africanas de chefia unívoca. Na realidade, esta foi uma invenção colonial portuguesa, que, criando a ideia de que o chefe da aldeia mandava em tudo, percebeu que lhe bastava comandar o dito chefe, para com pouca gente controlar amplos territórios, assim criando uma hierarquia sem disputa que lhe permitiu exercer o poder facilmente. Esta estrutura colonial portuguesa ficou enraizada na tradição legal angolana pós-independência, mas não corresponde a nenhuma tradição única africana, como se entende lendo os estudos de Patrício Batsikama sobre as práticas democráticas e consensuais, com poderes concêntricos, no antigo reino do Congo.

Há assim que voltar a uma perspectiva de deliberação conjunta, em que o chefe decide com o concurso de várias pessoas e os territórios são vistos de forma descentralizada, embora unida.

É fundamental criar uma nova Constituição em que a deliberação política se torne um processo dinâmico e multifacetado, em que a interacção entre o indivíduo e a comunidade desempenhe um papel central. Este modelo de governação deve reflectir uma rica tapeçaria de tradições culturais, valores comunitários e estruturas de poder que convirjam para alcançar objectivos comuns. No cerne deste processo está a ideia de integração. O indivíduo não é apenas um agente isolado, mas um participante activo num diálogo contínuo com a comunidade. Essa interacção promove um sentido de pertença e responsabilidade colectiva, em que as decisões são moldadas por uma pluralidade de vozes e perspectivas.

A Constituição deve tornar-se um espaço onde os diferentes poderes encontrem um equilíbrio delicado, colaborando para o bem-estar colectivo.

Serão estes os fundamentos de uma “Constituição da Reconciliação”.

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