A PERSPECTIVA DO COMITÉ DE PROTECÇÃO AOS JORNALISTAS (CPJ) SOBRE A CRIMINALIZAÇÃO DO JORNALISMO EM ANGOLA

Pela primeira vez em 24 anos, Angola aparece no último censo anual do Comité para Protecção de Jornalistas sobre jornalistas presos em todo o mundo, com um jornalista, Carlos Alberto, atrás das grades. É um registo de que nenhum governo se deve orgulhar.

No final de setembro do ano passado, a polícia deteve Alberto para cumprir uma pena de três anos de prisão por difamação criminosa, denúncia injuriosa e violação da liberdade de imprensa. Alberto continua preso até hoje e nós continuamos a pedir a sua libertação. Neste contexto, congratulo-me com a oportunidade de vos falar sobre a criminalização do jornalismo em Angola.

O meu nome é Angela Quintal. Sou uma jornalista e editora sul-africana que actualmente dirige o Programa de África do Comité para Protecção de Jornalistas (CPJ). É um prazer dirigir-me a vós hoje, embora, lamentavelmente, o faça a partir da nossa sede em Nova Iorque e não fisicamente em Luanda.

Antes de prosseguir, permitam-me que vos fale brevemente sobre o CPJ: O CPJ é uma organização independente, sem fins lucrativos, que promove a liberdade de imprensa em todo o mundo. Defendemos o direito dos jornalistas a reportar as notícias em segurança e sem medo de represálias. Somos uma organização de jornalistas para jornalistas, com sede em Nova Iorque.

Fundada em 1981, não aceitamos financiamento governamental. Temos cerca de 40 especialistas e uma grande rede de correspondentes em todo o mundo. Denunciamos violações da liberdade de imprensa em todo o lado, incluindo nos Estados Unidos, sem receios nem favores.

Em todo o mundo, temos assistido ao uso indevido do sistema judicial para atacar a liberdade de expressão em geral e a liberdade de imprensa em particular. Um relatório da Unesco de 2022 resume [5] as tendências, os desafios e as respostas a esta utilização abusiva. Incluí um link na versão física desta apresentação que vai ser distribuída e exorto-vos a lê-lo, caso ainda não tenham tido oportunidade de o fazer.

Gostaria de enfatizar que o CPJ não acredita que o direito à liberdade de imprensa seja absoluto. O CPJ não subscreve o incitamento à violência ou o discurso de ódio, e seguimos as normas internacionais para determinar se um discurso ultrapassou este limite.

Digo isto com a ressalva de que, em muitos países, o padrão automático dos governos é afirmar que um artigo ou reportagem ofensiva é discurso de ódio ou incitamento à violência quando, de facto, não é nada disso.

Uma das prioridades globais do CPJ é ajudar a acabar com a criminalização do jornalismo em todo o mundo. Esta criminalização tem muitos aspectos, incluindo o uso de acusações contra o Estado, tais como terrorismo, sedição, cibercrime e acusações de notícias falsas, que são utilizados de forma dissimulada para silenciar o trabalho de jornalistas que estão simplesmente a fazer o seu trabalho de investigação ou de denúncia.

No entanto, devido ao seu uso generalizado em Angola, quero focar apenas um aspecto da criminalização do jornalismo hoje, sobre o qual creio que a Procuradoria-Geral da República tem controlo, nomeadamente, o uso da difamação criminal.

Não deve escapar a nenhum de nós a ironia de, no nosso continente, onde sucessivos movimentos de libertação lutaram pela independência contra os colonizadores, os governos pós-independência terem optado por adoptar leis da era colonial, como a difamação criminosa, o insulto e a sedição, para violar os direitos humanos inalienáveis dos seus cidadãos.

De longe, a maioria dos casos que o CPJ documenta em Angola está relacionada com o uso de difamação criminal contra jornalistas. Para ser clara, este não é um problema que apenas o CPJ esteja a levantar. Os próprios jornalistas angolanos e as organizações de jornalistas locais também se têm queixado. A título de exemplo, jornalistas angolanos, protestaram em frente à Procuradoria-Geral da República em julho de 2022 para denunciar o que diziam ser a alegada perseguição judicial contra os profissionais da comunicação social em Angola. Vários jornalistas falaram sobre o número de processos-crime de difamação abertos contra eles.

Pensemos na situação destes jornalistas. Um já tem 13 processos-crime contra si relacionados com o seu jornalismo. Outro referiu que tinha pelo menos 20 processos-crime por alegada calúnia e difamação. Ele diz, e passo a citar, que “Todos estes processos são da autoria de funcionários do governo angolano e têm mais a ver com a intimidação de jornalistas”. Esta é a dura realidade que enfrentam.

Embora o CPJ tenha documentado vários casos, devo salientar que estes não esgotam os casos de difamação criminosa que os jornalistas angolanos enfrentam ou enfrentaram nas suas carreiras. Temos em registo pelo menos 25 jornalistas angolanos que enfrentaram ou estão a enfrentar processos criminais por difamação. Vários jornalistas cujos casos documentámos desde 2017 têm mais do que um processo criminal por difamação contra si, incluindo alguns anteriores à eleição do Presidente João Lourenço como chefe de Estado.

AQUI ESTÃO ALGUMAS ESTATÍSTICAS PREOCUPANTES

Pelo menos sete dos 25 jornalistas têm mais de cinco processos, um tem 12, outro tem 20 e um tem mais de 100 processos ao longo de anos.

Apenas oito casos na nossa lista resultaram em absolvições ou foram arquivados por um tribunal.

PELO MENOS DOIS FORAM CONDENADOS DESDE 2021

Outros jornalistas continuam a ser investigados pelo Serviço de Investigação Criminal ou pela Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal da Procuradoria-Geral da República, um desde 2000, outro desde 2013 e os outros desde 2019.

Estou a levantar esta questão porque acredito que vocês, como Procuradoria-Geral, têm o poder e a responsabilidade de parar de usar a difamação criminal contra jornalistas e outros imediatamente. As vossas acções podem abrir caminho para que o Parlamento de Angola aprove legislação para abolir estas leis. Trata-se de um passo crucial na tão necessária reforma jurídica relativa aos crimes de imprensa.

Ao recusarem-se a receber uma queixa ou a instaurar um processo, estariam a abrir caminho para que o Parlamento angolano aprovasse a legislação necessária para abolir a prática de criminalizar as leis da difamação e do insulto. Trata-se afinal de contas, de um fruto fácil em termos da tão necessária reforma legal no que se refere aos crimes de imprensa.

Pouco depois da tomada de posse do Presidente João Lourenço, em 2017, escrevemos [8] ao Presidente instando a sua administração a defender a protecção dos jornalistas e dos meios de comunicação social, a revogar as leis penais de difamação e injúria e a que o Estado abandone as acusações criminais contra jornalistas visados em retaliação pelo seu trabalho.

Na altura dissemos que era uma oportunidade para o Presidente Lourenço quebrar o padrão de violações da liberdade de imprensa sob o seu antecessor, José Eduardo dos Santos. Infelizmente, não vimos qualquer vontade de romper com o passado.

A batalha contra a difamação criminal não é só do CPJ. Somos parte de uma campanha global e continental para abolir estas leis. Já em 2010, a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos instou [9] todos os Estados membros, incluindo Angola, a descriminalizar a difamação e a revogar as leis de sedição e insulto, classificando-as como uma grave ameaça à liberdade de expressão. Não se trata de um apelo isolado, mas de um consenso global sobre a necessidade de mudança.

Em novembro de 2019, a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos decidiu que a difamação criminal no Ruanda violava os direitos à liberdade de expressão protegidos pela Carta Africana e instou o governo ruandês a alterar as leis do país sobre difamação e insulto.

Os sucessivos relatores especiais da União Africana sobre a liberdade de imprensa e o acesso à informação também apelaram repetidamente pela abolição das leis de difamação e insulto. No caso Federação de Jornalistas Africanos e Outros contra a Gâmbia, o CPJ e organizações parceiras apresentaram um relatório de amicicuria e, a CEDEAO em 2018 decidiu que o governo Gambiano devia revogar a difamação criminal. No mesmo ano o Supremo Tribunal da Gâmbia declarou inconstitucional o crime de difamação.

Os tribunais superiores de vários países africanos, na região da SADC, notoriamente do Lesoto e do Zimbabué, decidiram que a difamação criminal é inconstitucional.

No meu país, a África do Sul, as autoridades acusaram pela última vez um jornalista de difamação criminosa em 2013. A condenação foi anulada [18] em recurso. No dia 3 de abril deste ano, o Presidente Cyril Ramaphosa promulgou uma lei que aboliu formalmente o crime de difamação criminal de direito comum. No comunicado de imprensa do CPJ que saudava este desenvolvimento, esperávamos que outros países da SADC, particularmente Angola e a RDC, agissem de forma semelhante.

Angola está bem-posicionada para se juntar à África do Sul na demonstração de um compromisso com a liberdade de imprensa O CPJ tem criticado repetidamente a prática de utilizar a difamação criminosa contra os meios de comunicação social em Angola. Registámos que as investigações e as acusações formais são muitas vezes deixadas a pairar sobre a cabeça de um jornalista como a proverbial espada de Dâmocles. Um dos jornalistas sob investigação disse ao CPJ que, embora o caso possa não ir a tribunal “um jornalista tem sempre receio de mencionar um nome que já o processou, por isso, é evidente, é a intimidação que serve o objectivo”.

É injusto, e nós argumentamos que se trata de uma tentativa velada de garantir que os jornalistas se mantenham na linha, se autocensurem, ou corram o risco de serem efectivamente processados. É ainda mais injusto quando se nota que a maior parte destas investigações parecem ficar em aberto e têm-se prolongado durante anos, só para serem ressuscitadas em aparente represália por outros supostos erros. O CPJ tem argumentado que as investigações criminais de difamação são uma forma conveniente de amordaçar a imprensa independente. Que melhor forma de garantir que o jornalismo de investigação e a exposição da corrupção governamental e de outros actos ilícitos nunca vejam a luz do dia?

Para além da difamação criminosa, documentámos a utilização da lei do ultraje e injúria contra jornalistas angolanos, incluindo em setembro e outubro de 2023, e temos condenado esta situação com veemência. Em um dos casos que documentámos em junho de 2022, em que três jornalistas enfrentaram investigações criminais de difamação e injúria, afirmámos que a vaga de casos espúrios de difamação criminal contra jornalistas em Angola mostra que os políticos e figuras influentes são alérgicos ao escrutínio público e estão a tirar partido das leis da era colonial para criminalizar o jornalismo. Na altura, exortámos os procuradores a deixarem de ceder às elites que querem manter os cidadãos na ignorância. Dissemos que deviam recusar-se atratar de tais casos, de acordo com as obrigações internacionais e continentais.

Reitero hoje este apelo. Espero que concordem que não faz sentido desperdiçar recursos finitos e capacidade no já sobrecarregado sistema de justiça criminal de Angola na criminalização do jornalismo, em violação da Carta Africana e das obrigações internacionais de que Angola é parte e em violação da própria Constituição de Angola, que respeita a liberdade de expressão.

Porquê, então, perseguir jornalistas por difamação criminal relacionada com o seu trabalho, especialmente quando as partes lesadas têm outros métodos para procurar reparação, incluindo processos judiciais por difamação civil, arbitragem ou auto-regulação da imprensa? Além disso, o facto de políticos eleitos ou figuras públicas recorrerem a insulto e queixas por difamação contra os seus críticos ou detractores é uma prática que os serviços da Procuradoria-Geral não devem tolerar. Os funcionários públicos devem desenvolver couraças. Noutras Jurisdições, quando se trata de figuras públicas, os tribunais são mais propensos a favorecer a liberdade de expressão, porque é do interesse do público discutir abertamente essas figuras.

Mesmo em termos de difamação civil, o CPJ acredita que os funcionários do governo não devem usar estas leis para ameaçar, amordaçar e punir os meios de comunicação social, processando-os com indemnizações excessivas. Gostaríamos de ver meios alternativos de resolução de litígios sem recorrer aos tribunais, incluindo o direito de resposta e as repreensões por parte das organizações profissionais.

Para terminar, gostaria de citar um jornalista que esteve presente na manifestação de 2022, em declarações à agência Lusa: “Os jornalistas não são os culpados pelos problemas que têm acontecido no país. Investiguem os culpados, não os jornalistas”. Concordamos plenamente. O Serviço de Investigação Criminal de Angola e a Procuradoria-Geral deveriam em vez concentrar-se nos verdadeiros criminosos e não nos jornalistas que estão simplesmente a fazer o seu trabalho. Afinal, jornalismo não é crime.

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