ALVO: ÁFRICA DO SUL – JOÃO MELO
Como se ainda fosse necessário, o embaixador americano em Pretória confirmou na semana passada quem se arroga a mandar no mundo. No dia 11 deste mês, Reuben Briget, que está em fim de missão, acusou a África do Sul de fornecer armas à Rússia, apesar da sua declarada posição de neutralidade na actual guerra da Ucrânia, a qual opõe Moscovo ao complexo EUA/OTAN/UE (lamentavelmente, os ucranianos são apenas a vítima nessa verdadeira guerra por procuração travada no seu país).
Segundo o diplomata (?), armas e munições teriam sido carregadas num cargueiro russo que, em Dezembro de 2022, atracou perto da cidade do Cabo, na maior base naval do país, Simon´s Town.
Bridget fez essas declarações num encontro com jornalistas sul-africanos. Questionado na altura sobre a fiabilidade das suas afirmações, garantiu que eram “sólidas”. Acrescentou ele: – “Gostaríamos que a África do Sul começasse a praticar a sua política de não-alinhamento”. Esta última declaração é um verdadeiro exercício de hipocrisia explícita, conhecidas que são as pressões do Ocidente Alargado para que os países do Sul que ousam manter uma posição independente relativamente à guerra da Ucrânia abdiquem da mesma, passando a alinhar com a perspectiva da grande aliança EUA/OTAN/UE.
Entretanto, a reacção das autoridades sul-africanas fez-se sentir imediatamente. Um dia depois das declarações do embaixador americano cessante, o Departamento de Relações Internacionais e Cooperação (DIRCO, em inglês) chamou Reuben Briget e comunicou-lhe o desagrado do país pelas suas declarações proferidas na véspera. Na avaliação do referido departamento, tais declarações divergem do espírito das relações “cordiais e mutuamente vantajosas” existentes entre a África do Sul e os EUA. De acordo com o comunicado, o embaixador terá reconhecido que ultrapassou as linhas vermelhas impostas pelo cargo que ocupa, tendo-se desculpado por isso “perante o governo e o povo sul-africanos”.
Entretanto, o Presidente Cyril Ramaphosa criou uma comissão de inquérito independente, presidida por um juiz reformado, a fim de averiguar as alegações de Reuben Briget, prometendo que todos aqueles que, eventualmente, tiverem desrespeitado a lei serão punidos. Note-se que a África do Sul é conhecida por ser um dos países do mundo com regras mais estritas para vender armas a países estrangeiros. O processo é administrado pelo Comité de Controlo da Convenção Nacional de Armas, criado ao abrigo da própria constituição do país.
Por outro lado, na última segunda-feira, 15, o Partido Comunista da África do Sul (SACP, em inglês) acusou os Estados Unidos de espionagem contra o país. Principal parceiro do ANC na coligação que governa a África do Sul desde 1994 (o outro é a confederação sindical COSATU), o SACP interrogou-se: – “Como se explica que um embaixador que representa um estado estrangeiro no nosso país tenha feito essas afirmações?”. Na verdade, a suspeita faz todo o sentido, se nos lembrarmos, por exemplo, das revelações de Julian Assange sobre os actos de espionagem praticados pelos EUA contra líderes internacionais, as quais são o motivo por que ele continua encarcerado até hoje numa prisão britânica.
Relembro aqui a síntese do Presidente Ramaphosa acerca da posição do seu país em relação à guerra da Ucrânia: – “A realidade é que o conflito entre a Rússia e a Ucrânia e as tensões que lhe estão subjacentes não serão resolvidos por meios militares. Ele deve ser resolvido politicamente. A África do Sul não tomará partido numa disputa entre potências globais. Não aceitamos que a nossa posição não-alinhada favoreça a Rússia acima de outros países. Tão pouco aceitamos que isso coloque em risco as nossas relações com outros países”.
O facto, diga-se a terminar, é que a posição da África do Sul incomoda os defensores da ordem unipolar organizada em torno dos EUA, os quais não podem sequer usar contra Pretória o argumento de que se trata de uma ditadura ou autocracia, uma vez que a sua reputação democrática é inquestionável (na verdade, a África do Sul é muito mais democrática do que a Ucrânia). Na mesma situação estão outras duas importantes nações do Sul Global, o Brasil e a Índia, mas, aparentemente, o elo mais fraco será a África do Sul. É por aí que o complexo EUA/OTAN/EU quer começar a minar.