JOEL LEONARDO DESOBEDECE A SUPREMO
O presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, desobedece a uma decisão judicial do Tribunal Supremo, dá ordens em processos alheios e aparece envolvido em múltiplos casos de corrupção e abuso de poder como principal suspeito. É o demolidor da possibilidade de um Estado de direito em Angola. Como é possível que se mantenha no cargo? A questão foi hoje apresentada à Procuradoria-Geral da República, numa denúncia criminal que partilhamos neste portal.
DIGNÍSSIMO PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
Assunto: Denúncia criminal contra o Venerando Presidente do Tribunal Supremo, Brigadeiro Joel Leonardo
Rafael Marques de Morais, portador do B.I. [dados pessoais omitidos], residente em [dados pessoais omitidos], vem, com base nos factos em seguida expostos, solicitar que seja realizada uma investigação criminal contra Joel Leonardo, juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo e do Conselho Superior da Magistratura Judicial. Tais factos, depois de devidamente aprofundados, podem constituir a prática de crimes de Denegação de Justiça (artigo 348.º do Código Penal), Prevaricação (artigo 349.º do CP), Desobediência (artigo 340.º do CP), Corrupção Passiva de Magistrado (artigo 361.º do CP) e Abuso de Poder (artigo 374.º do CP).
I. O arquivamento do processo Higino Carneiro
O ex-governador provincial de Luanda, Higino Carneiro, foi pronunciado por alegada prática de crimes de peculato, nepotismo, tráfico de influências, associação criminosa e branqueamento de capitais — actos que teria, supostamente, cometido entre os anos de 2016 e 2017.
De forma até hoje não esclarecida publicamente, o arguido viu o seu processo arquivado por aparente ordem expressa do próprio juiz presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, aqui denunciado.
A ordem para a elaboração do “despacho de despronúncia” e consequente arquivamento do processo contra Higino Carneiro terá sido uma iniciativa pessoal do próprio juiz presidente conselheiro do Tribunal Supremo, que terá orientado e pedido sigilo ao juiz presidente da Câmara Criminal daquela instância judicial, Daniel Modesto Geraldes, no sentido de este “pôr termo ao caso” e não partilhar a decisão com os seus pares.
No entanto, esta ordem tem vários vícios formais:
Primeiro, ocorreu num momento extemporâneo, em que a Higino Carneiro já não restava instância alguma de recurso, senão depois da fase do julgamento. E, mesmo nessa fase, o recurso teria de ser feito junto do Plenário do Tribunal Supremo, e não mais ao nível da sua Câmara Criminal.
Segundo, Higino Carneiro foi despronunciado pelo mesmo juiz que o pronunciou, depois de o processo ter sido introduzido no Tribunal Supremo pelo Ministério Público, violando, assim, uma norma importante do “ritualismo processual” que, à partida, o impedia de voltar a tomar contacto com o mesmo.
Quando o processo foi introduzido no Tribunal Supremo pelo Ministério Público, por conta do foro privilegiado de que gozava Higino Carneiro, coube ao juiz Daniel Modesto Geraldes fazer a pronúncia, com base no que havia sido produzido na fase de instrução preparatória do caso.
Ao tomar contacto com os argumentos da acusação, o juiz Daniel Modesto Geraldes anuiu aos fundamentos arguidos, concordando que os factos constantes no processo correspondiam, em “grau, género e número”, aos aludidos pelo Ministério Público. Ou seja, que no exercício das suas funções, enquanto governador de Luanda, Higino Carneiro havia praticado vários ilícitos criminais.
Não satisfeita com o despacho de pronúncia de Daniel Modesto Geraldes, a defesa de Higino Carneiro interpôs recurso sobre o mesmo, naquilo que se poderia considerar como o último “expediente” a que tinha direito, pelo menos naquela fase do processo.
Por conseguinte, chegados a essa fase, Daniel Modesto ficaria impedido de voltar a decidir sobre o mesmo processo, fossem quais fossem as circunstâncias ou os factos aludidos, uma vez que tinha sido este a fazer a pronúncia que estava a ser objecto de recurso junto da Câmara Criminal.
Para decidir sobre o referido “recurso sobre a pronúncia”, foi realizado um sorteio que ditou como relator o juiz conselheiro Aurélio Simba. Depois de apreciar os argumentos da defesa de Higino e do “colega” Daniel Modesto Geraldes, o juiz Aurélio Simba decidiu “negar provimento” ao referido recurso interposto, caucionando o “despacho da acusação”.
Negado que foi o referido recurso, a Câmara Criminal do Tribunal Supremo abriu caminho para o início de um conjunto de procedimentos, que culminariam com a marcação e realização do julgamento.
A Câmara Criminal já havia indicado quem tomaria parte do “trio de juízes” da mesa de julgamento, que seria composto por um juiz relator (o juiz conselheiro Norberto Sodré) e dois adjuntos.
A isto acresce que em 19 de Agosto de 2021, o próprio Joel Leonardo veio despachar e decidir um requerimento de Higino Carneiro, mandando desbloquear de imediato uma conta bancária deste arguido sediada no Banco de Poupança e Crédito (BPC). Não se entende a que propósito surge um despacho deste teor (“descongelamento” das contas de Higino Carneiro) por alguém que não é o juiz natural do processo e não tem intervenção no mesmo, aparentando ser uma intervenção de favor (Doc. n. º1).
São estes os factos em que, aparentemente, Joel Leonardo intervém fora do âmbito dos seus poderes jurisdicionais para terminar, sem nenhum fundamento, com o processo criminal contra Higino Carneiro. Há uma intervenção não jurisdicional num processo jurisdicional por parte de Joel Leonardo, sem qualquer fundamento legal.
II. Perseguição ao conselheiro Agostinho Santos
A actuação do juiz conselheiro Agostinho Santos tornou-se um incómodo para o aqui denunciado, em virtude do facto de este magistrado exigir transparência, tentando impô-la aos procedimentos de Joel Leonardo, nomeadamente no que toca às omissões deste último perante a Assembleia Nacional, a propósito da designação do novo presidente da Comissão Nacional Eleitoral.
Depois disso, começou uma saga persecutória contra Agostinho Santos, cujos conteúdos são públicos e notórios e que nos abstemos de repetir, tendo redundado numa decisão disciplinar de demissão deste juiz conselheiro.
O ponto com ênfase criminal reflecte-se nos seguintes factos:
A 27 de Março de 2023, a Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo aceitou a acção de impugnação da demissão interposta por Agostinho Santos e fixou-lhe efeitos suspensivos. Quer isto dizer que a demissão ficava sem efeito até à decisão final da causa (Doc. n.º 2).
Ora, por despacho de 6 de Abril de 2023, Joel Leonardo desobedeceu à ordem do seu próprio tribunal e impediu Agostinho Santos de exercer as suas funções, mantendo-o na qualidade de demitido (Doc. n.º 3). A verdade é que, por decisão do Tribunal Supremo, Agostinho Santos deixou de estar demitido, mas Joel não obedece.
Temos, portanto, mais uma intervenção ao arrepio da lei por parte do juiz presidente.
III. Comercialização de imóveis apreendidos no “combate à corrupção”
Várias denúncias públicas dão conta de um alegado esquema de distribuição e de venda de imóveis confiscados pela justiça angolana no âmbito do combate à corrupção, o qual, alegadamente, é liderado por Joel Leonardo.
Os imóveis em causa são os conhecidos edifícios da Vila Pacífica (Zango-0), que, apesar de construídos com fundos públicos, se encontraram durante vários anos em posse da empresa CIF – China International Fund, confiscada pelo Estado em Fevereiro de 2020.
A entidade do Estado que tinha a guarda dos imóveis é o Cofre de Justiça, conforme garantiu à agência noticiosas Lusa, em Março de 2022, o procurador-geral da República Hélder Fernando Pitta Groz: “E enquanto não houver sentença definitiva, a gestão desses bens tem sido feita pelo Cofre de Justiça ou, no caso de activos que digam respeito a empresas, tem sido feita pelos departamentos ministeriais competentes nas diversas áreas.”
Contudo, Joel Leonardo, na qualidade de presidente do Tribunal Supremo, terá ordenado que alguns destes imóveis fossem distribuídos entre os funcionários dos tribunais. De acordo com várias denúncias públicas, alguns dos apartamentos – supostamente destinados a funcionários do Tribunal Supremo – estarão a ser comercializados pela equipa de Joel Leonardo, no valor de 35 milhões de kwanzas. O dinheiro da venda não tem ido parar aos cofres do Estado.
No passado dia 27 de Dezembro, um grupo liderado por um sobrinho de Joel Leonardo, identificado como “Silvano”, uma sobrinha, Joelma Baptista, e um assessor, João Jorge, deslocaram-se à Vila Pacífica alegando terem autorização para ocupar os edifícios, num total de 100 apartamentos.
“Silvano”, o sobrinho do presidente do Supremo que apareceu a liderar o grupo de ocupação das casas, é na verdade funcionário do Banco BPC. Nesta missão, fez-se apresentar junto dos guardas dos imóveis com uma guia de trabalho que o dá como trabalhador efectivo do Tribunal Supremo. A venda e distribuição dos imóveis para pessoas próximas de Joel Leonardo é um assunto que já foi matéria na TV Zimbo. Mas é no próprio Supremo que têm surgido advertências pelo facto de os familiares de Joel Leonardo usarem falsas declarações de serviço para se fazerem passar por funcionários do Supremo.
IV. Conclusões
Os três conjuntos de factos acima descritos correspondem à prática de crimes por magistrado no exercício das suas funções, o que resulta em gravidade acrescida, preenchendo os tipos criminais Denegação de Justiça (artigo 348.º do Código Penal), Prevaricação (artigo 349.º do CP), Corrupção Passiva de Magistrado (artigo 361.º do CP) e Abuso de Poder (artigo 374.º do CP).
Faz-se esta participação na perspectiva da cidadania activa, e em resposta à campanha pública da Procuradoria-Geral da República: “Um país sem corrupção depende de nós”; “Um país sem corrupção depende de mim, de ti e de todos nós”.
Consequentemente, esta participação é coerente com a defesa da credibilização da justiça. Acreditamos que o combate à corrupção e a moralização da sociedade devem decorrer nos tribunais, e não através da mera agitação de rua, das redes sociais, de meios violentos ou não constitucionais.
É dentro da legalidade e da operação eficiente e coordenada das magistraturas que reside o futuro do Estado de Direito e de Democracia em Angola.
Espera deferimento,
Rafael Marques de Morais.