CERCO A ISABEL DOS SANTOS: REVELADAS DEZENAS DE DOCUMENTOS, OFFSHORES E MUITOS MILHÕES DESAPARECIDOS

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Uma queixa e um relatório revelam os canais, os momentos e a forma como Isabel dos Santos se terá apropriado de muitos milhões de euros do Estado angolano. O gestor Mário Leite da Silva e o advogado Jorge Brito Pereira aceitaram gravar testemunhos num destes processos cíveis.

Em Portugal, as autoridades estão a receber as informações que vêm dos Países Baixos e até já reuniram com Leite da Silva, que quis um encontro informal com o

Ministério Público.

A notificação visava aquilo que o advogado chamou a “Transacção Exem”, um negócio que começou no fim de 2006 e já depois de a companhia estatal angolana Sonangol ter comprado, por 198 milhões de euros e através da Esperaza, uma participação indirecta de cerca de 15% na Galp Energia – na realidade, a Esperaza tinha 45% na Amorim Energia, registada também em Amesterdão, que possuía 33,34% do capital da Galp. Mas a 21 de dezembro desse mesmo ano, a Sonangol vendeu 40% das suas acções na Galp à empresa Exem Energy, igualmente sediada nos Países Baixos, mas controlada por Isabel dos Santos e pelo marido.

“A Exem, através de uma empresa pertencente a Isabel dos Santos nas Ilhas Virgens Britânicas [Exem Africa] ‘pagou’ apenas 15% (cerca de 11 milhões de euros) de um preço de compra não comercial de cerca de €75 milhões pela participação indirecta na Galp; a empresa estatal angolana Sonangol acordou com a filha do Presidente que os restantes 85% seriam pagos a partir de dividendos futuros da Esperaza (aos quais a Sonangol, já tinha direito de qualquer forma)”, refere o documento holandês, a que a SÁBADO teve acesso, dando um salto de quase 10 anos, para junho de 2016, quando Isabel dos Santos foi nomeada pelo pai como presidente da Sonangol e, cerca de um ano depois, acabou destituída pelo novo Presidente angolano João Lourenço.

“No período que antecedeu a sua destituição, mas sobretudo imediatamente após a mesma, Isabel dos Santos realizou uma série de operações, sempre activamente auxiliada por outros réus desta acção, para extrair mais de 130 milhões de dólares [€123 milhões ao câmbio actual] da Sonangol e 52,6 milhões (€50 milhões) da Esperaza”, garante o documento alertando que a Amorim Energia pagou, entre 2006-17, €147,4 milhões em dividendos à Esperaza que nunca foram distribuídos à Sonangol e a outros accionistas por influência do clã Dos Santos. Falida formalmente desde 18 de maio do ano passado, a Exem está a ser alvo de investigações civis e criminais em Portugal, Angola e nos Países Baixos, neste último caso no Gabinete de Fraude Grave do Ministério Público (MP). A 27 de agosto de 2020, o MP holandês impôs uma medida cautelar criminal sobre as acções que a Exem detinha no capital da Esperaza.

É isto que também consta no despacho de citação do processo cível que o advogado diz que custou só em traduções mais de €45 mil. Na prática, M. J. Drop usou o seguinte expediente para cumprir a lei holandesa das notificações: remeteu uma cópia do documento em árabe, por correio registado e através da empresa UPS, para o alegado endereço de Isabel dos Santos nos Emirados Árabes Unidos, concretamente no número 20A Almas Tower, Jumeira Lakes Towers, na cidade do Dubai. Já a segunda cópia, em francês, foi para a casa do enteado em Paris e a terceira, em holandês, seguiu para o gabinete do Ministério Público junto do Tribunal Distrital de Amesterdão, onde estava previsto que oito meses depois, daqui a cerca de duas semanas, a 15 de março, todos os visados teriam de se fazer representar no processo a partir das 10h da manhã. Adicionalmente, um extracto do despacho foi também publicado online no Staatscourant, uma espécie de Diário da República local.

Depois disto, o advogado holandês repetiu a iniciativa de notificação em português para elementos muitos próximos de Isabel dos Santos para também se fazerem representar no tribunal holandês. Além de mandar uma cópia do documento para a Direcção-Geral de Administração da Justiça e para os tribunais judiciais da comarca de Lisboa e de Lisboa Oeste, foram notificados em Portugal os gestores Mário Leite da Silva e Sarju Raikundalia, bem como o advogado Jorge Brito Pereira. Estes homens são vistos pelas investigações civis e criminais em curso como três dos principais testas de ferro da filha de Eduardo dos Santos.

Os homens de confiança

No processo cível holandês, a Esperaza considera que Mário Leite da Silva “o principal arquitecto” da rede de Isabel dos Santos alegadamente constituída por “centenas de empresas, sendo também director em muitas delas, e o criador e implementador das estruturas legais e económicas de fachada, incluindo a da “Transacção Exem” – Silva era também o director B da Esperaza designado pela Exem.

No documento é referido ainda que Leite da Silva terá inclusive recomendado o antigo contabilista da consultora PWC, que trabalhou no Porto, Sarju Raikundalia, para director financeiro da Sonangol. Raikundalia foi nomeado pelo Presidente José Eduardo dos Santos a 3 de junho de 2016 e chegou a ser director A da Esperaza. Depois de exonerado passou a trabalhar até abril de 2020 para a empresa de Isabel dos Santos, a Santoro, que deteve uma importante participação accionista no banco BPI.

Já Brito Pereira é um advogado que desde 1991 (e a partir de 1998 como sócio) esteve ligado ao escritório PLMJ, que chegou a redigir rascunhos de decretos para o Presidente José Eduardo dos Santos. A partir do fim de 2015 e mantendo a actividade de advogado e director de várias empresas controladas por Isabel dos Santos, Brito Pereira transitou para o escritório de advogados da Uría, em Lisboa, o local que dava amiúde para receber correspondência das empresas offshore registadas em Malta e onde desempenhava cargos de director.

Só renunciou a sócio do escritório de advogados após a publicação pelo jornal Expresso do primeiro artigo sobre o caso Luanda Leaks, em janeiro de 2020. Na altura, Brito Pereira fez um comunicado a dizer que saia da Uría “sem admissão de culpa” e que também deixava a profissão de advogado para fazer uma tese de doutoramento.

Entretanto, o advogado doutorou-se, voltou a inscrever-se na Ordem dos Advogados e passou a exercer na J+Legal, um escritório com sede nas Amoreiras que nasceu, conforme informa o respectivo site, de um “almoço de amigos apaixonados pela prática do Direito”. “(…) a Uría e Brito Pereira participaram activamente na criação do desvio, coordenaram o processo e garantiram que o desvio fosse levado a cabo em nome de Isabel dos Santos e/ou Dokolo. Ao fazê-lo, cada um agiu de forma ilícita perante a Esperaza”, refere o documento do processo cível holandês, destacando que também terá sido notificada a sociedade de advogados Uría Menéndez, sediada em Madrid e com sucursal em Lisboa.

Neste processo também foi feita a notificação, entre outros, de Fernando Teles, banqueiro e sócio de Isabel dos Santos no Eurobic/Bic (notificado em Angola), bem como do antigo administrador da Sonangol Manuel Lemos (Angola) e de um dos amigos de infância e sócio de Sindika, Konema Mwenenge, agora com residência oficial no Dubai. Konema chegou a declarar no Eurobic que morava em Londres e é também um dos alvos prioritários das investigações criminais em Portugal nos processos do universo Isabel dos Santos.

No banco português, o Ministério Público (MP) encontrou um rasto de contas e muitas transferências internacionais do congolês relacionadas sobretudo com negócios imobiliários, do petróleo e de diamantes. Em contas de 11 sociedades instrumentais Konema estava identificado como administrador ou director, como sucedia precisamente nos casos da Exem Energy e a Exem Oil Gas, as duas sociedades alvo das investigações holandesas. Num dos processos portugueses, o 223/20.6TELSB, os procuradores Rosário Teixeira e Anabela Furtado chegaram a escrever que, nas várias contas e operações que tinham identificado, “o referido Konema Mbamogo Mwenenge se encontra a intervir como fiduciário de Sindika Dokolo e de Isabel dos Santos, estando envolvidos montantes que resultam de operações desenvolvidas pelos mesmos com o Estado de Angola e em que este se entende agora como tendo sido enganado e lesado”.

É na introdução do documento holandês de 137 páginas que ficou registado que o alvo do processo cível tem na base o caso Luanda Leaks, um conjunto de trabalhos publicados a partir de janeiro de 2020 por órgãos de informação que integram o Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação. Alertando que após a saída de Eduardo dos Santos do poder em Angola, em 2017, já tinham sido iniciadas investigações criminais em Angola e em Portugal por causa de alegados desvios de muitos milhões de euros do Estado angolano, o documento frisa que Isabel dos Santos terá desempenhado, segundo organizações não governamentais internacionais, um “papel central” no desvio de “entre 4 mil milhões e 7 mil milhões de dólares ou então ganhou-os com fundos conseguidos de forma indevida”. A SÁBADO apurou que as autoridades angolanas já discutiram informalmente outro número: 10 mil milhões de dólares, quase €9,5 mil milhões. O equivalente ao custo de 10 pontes Vasco da Gama.

Mais adiante, o documento holandês refere que, “claramente, Isabel dos Santos não actuou sozinha. Foi ajudada nesta tentativa por membros da sua família, incluindo o seu falecido esposo, Sindika Dokolo, por um círculo de funcionários leais, por consultores jurídicos e fiscais e contabilistas, nacionais e no estrangeiro, e por bancos” alegadamente controlados pela angolana e por parceiros de negócios. “Todos estes facilitadores aceitaram pagamentos ou beneficiaram de outra forma de activos dos quais Isabel dos Santos se apropriou”, garante o documento antes de complementar: “Estes facilitadores estabeleceram uma aglomeração inextrincável de literalmente centenas de entidades legais em dezenas de jurisdições [Portugal, Suíça, Malta e as Ilhas Virgens Britânicas desempenharam o papel principal para quem intentou o processo], tendo ocupado cargos e posições onde tinham papéis de testas de ferro, mulas de dinheiro ou parceiros de negócios.”

Neste documento é ainda referido que através de um requerimento de 13 de março de 2020 a Sonangol e a Esperaza já tinham solicitado às autoridades holandesas que investigassem os negócios e as relações da Esperaza, em particular a questão do negócio das acções da Exem. A investigação foi então fixada para o período posterior a 1 de janeiro de 2017, tendo as autoridades suspendido o director da Esperaza Mário Leite da Silva, bem como nomeado um director temporário independente e transferido a participação na Esperaza detida pela Exem para um agente fiduciário.

Na sentença de 23 de julho de 2021 do Instituto de Arbitragem dos Países Baixos, o tribunal que decidiu o litígio entre a Exem e a Sonangol, foi considerado que a “Transacção Exem” terá sido concretizada sob a influência de “grande corrupção, sendo nula e sem efeito porque violou a ordem pública e os bons costumes”. Resultado: todas as acções da Esperaza eram propriedade da Sonangol e a Exem teria de devolver os 52,6 milhões de euros pagos a partir das contas da Esperaza no Bic Cabo Verde para a conta da Exem no Eurobic. Dinheiro que depois terá desaparecido através da empresa portuguesa Terra Peregrin, aberta em 2014, com sede na Av. da Liberdade e controlada também por Isabel dos Santos. Esta é de resto uma das mais de 300 empresas e offshores que as investigações holandesas dizem ter sido utilizadas ao longo dos anos por Isabel dos Santos, pelo marido e por vários testas de ferro para “alienar, (re) investir e branquear os activos do Estado angolano”.

As empresas e os advogados

Tal como em Portugal está a acontecer nos processos de arresto solicitados por Angola e nos mais de 15 inquéritos autónomos criminais que visam Isabel dos Santos, os seus testas de ferro e sociedades instrumentais (ver texto págs. 36 a 40), nos últimos anos tem sido travada uma guerra jurídica nos tribunais cíveis e na arbitragem de conflitos dos Países Baixos. E o caso deverá evoluir para a justiça criminal local e estender-se a Portugal com a Esperaza a ponderar constituir-se como assistente em todos os processos criminais em curso para colaborar com as autoridades portuguesas com dados obtidos noutras jurisdições, segundo garante à SÁBADO uma fonte judicial.

As autoridades holandesas, angolanas e portuguesas estão também interessadas em apurar como Isabel dos Santos tem estado a pagar as despesas jurídicas (e também de serviços de promoção de imagem pública) através do complexo circuito que montou ao longo dos anos. Em Portugal, o MP já detectou no processo 252/20.0TELSB inúmeras transferências internacionais, realizadas antes dos arrestos e a partir de contas em bancos portugueses de empresas controladas por Isabel dos Santos, com destino a importantes escritórios de advogados como o Schillings International (2 milhões de libras, hoje cerca de €2,3 milhões), o Joseph Hage Aaronson (2,1 milhões de libras – €2,4 milhões), o Quinn Emanuel Urquhart & Sullivan (mais de €5 milhões) e o Grosvenor Law.

Aliás, terá sido deste último escritório inglês de advocacia que saíram centenas de milhares de euros para pagar inicialmente as defesas em Portugal de Isabel dos Santos, das suas empresas e dos seus alegados testas de ferro. Por exemplo, o escritório Germano Marques da Silva & Associados – que tentou deitar por terra a todo o custo o arresto preventivo das autoridades angolanas e hoje defenderá também a própria Isabel dos Santos – terá recebido da Grosvenor pagamentos em tranches mensais, um total de cerca de €720 mil, dinheiro que saiu depois, em três vezes das contas da sociedade, entre 2020 e inícios de 2021, para os advogados João Barroso Neto e João Costa Andrade. Os dois advogados são primos e o segundo é filho de Costa Andrade (ex-presidente do Tribunal Constitucional) e já representou António Pinto de Sousa, primo de José Sócrates, sob investigação no caso Monte Branco, também titulado pelo procurador Rosário Teixeira.

Outros advogados que em Portugal têm ou tiveram intervenção, de forma directa ou indirecta, nos processos que visam Isabel dos Santos e o Eurobic são Germano Marques da Silva, Marco António Costa, Carlos Pinto de Abreu, José António Barreiros, Paulo Saragoça da Mata, Tiago Rodrigues Basto, José Pinto Monteiro e José Lobo Moutinho, este último o actual director nacional da Faculdade de Direito da Universidade Católica. A SÁBADO sabe que, depois de avultados pagamentos iniciais, vários destes advogados portugueses deixaram de ser pagos com a mesma prontidão e através dos mesmos circuitos internacionais.

Nos Países Baixos as autoridades também estão atentas a estes movimentos financeiros, porque bloquearam no ano passado uma transferência de 230 mil francos suíços (cerca de €232 mil) que uma empresa offshore detida por Isabel dos Santos no Dubai fez chegar a uma conta a fim de financiar a defesa da Exem. “Devido a suspeitas de branqueamento de capitais, o Gabinete de Fraude Grave do MP ordenou a penhora (…) do saldo da conta a 18 de maio de 2022”, referiu o advogado da Esperaza, lembrando que a sentença arbitral que ordenou à Exem Energy o pagamento de custas à Sonangol, cerca de €2,9 milhões, nunca foi pago.

Também a sucursal Exem Oil & Gas não pagou mais de €2,6 milhões de custas à Sonagás, uma filial da Sonangol que requereu e conseguiu que o London Court of International Arbitration (LCIA) decretasse a falência da Exem Oil & Gas – esta empresa foi considerada um veículo ao qual o Presidente Eduardo dos Santos atribuiu 10% dos lucros de um consórcio internacional para o desenvolvimento de campos de gás angolanos. O pagamento das custas deveu-se ao facto de a Exem Oil ter perdido o processo onde reclamou uma indemnização de 220 milhões de dólares (€217 milhões ao câmbio actual) por alegada violação do contrato por parte do governo angolano de João Lourenço.

Tanto no que diz respeito à Exem Energy como à Exem Oil, o MP e os tribunais portugueses impediram sempre que fossem movimentadas as contas destas empresas, que argumentaram que precisavam de se defender e pagar despesas associadas aos processos no estrangeiro, nomeadamente nos Países Baixos. As duas empresas chegaram a recorrer para o Tribunal da Relação de Lisboa que não lhes deu razão, acolhendo, por exemplo e de forma implícita, aquilo que o MP chegou a escrever na contestação ao recurso da Exem Energy. “Os indícios recolhidos vão no sentido de a ora recorrente (…) ser uma mera sociedade-veículo, criada e utilizada para movimentar/fazer circular fundos de origem ilícita”, refere o acórdão do processo 223/20.6TELSB, assinado a 30 de junho de 2021 pelos desembargadores Alfredo Costa e Rosa Vasconcelos.

OS TESTEMUNHOS INÉDITOS

O relatório de investigação sobre a Esperaza Holding BV, de 31 de outubro de 2022, é outro documento fundamental que ajuda a explicar o cerco a Isabel dos Santos que está em curso nos Países Baixos. Com 181 páginas e da autoria de Willem Jan Van Andel, o relatório menciona e reproduz dezenas de documentos bancários, emails e testemunhos com vista a cumprir o despacho de 17 de setembro de 2020 das autoridades holandesas que, a pedido da Sonangol e da Esperaza, ordenaram uma investigação aos já citados negócios e relações da Esperaza a partir de 1 de janeiro de 2017. A investigação custou €150 mil, não tendo Willem Andel conseguido obter e gravar o testemunho de Isabel dos Santos, mas fê-lo com, por exemplo, Leite da Silva, Brito Pereira e Raikundalia.

Foi de resto este especialista holandês que, com base em inúmeros documentos e testemunhos, reconstituiu o que se terá passado nas horas em que foram tomadas as decisões de transferir muitos milhões da Esperaza para a Exem, bem como outras movimentações financeiras, apressadas e igualmente com cifras elevadas, ocorridas imediatamente após Isabel dos Santos ter sido demitida em novembro de 2017 de presidente da Sonangol. No relatório a que a SÁBADO teve acesso, e que já será do conhecimento do MP português, constam declarações como esta: “Este email confirma mais uma vez que se tratou de um enorme trabalho apressado – ‘estão à espera que isto seja assinado’ e ‘uma vez que não teremos tempo de pedir a um consultor fiscal’. A questão do porquê de tudo isto ter de ser feito com vapor e água a ferver – quando estas eram decisões importantes – não é levantada por ninguém no contacto por email”, referiu o investigador, que deu pouca importância às justificações do advogado Brito Pereira quando este justificou que a questão do pagamento dos dividendos da Esperaza já se arrastava desde 2014.

“Se sou informado de que dois accionistas [Sonangol e Esperaza] tomaram uma decisão e me instruem para acelerar tudo, é o que eu faço”, disse o advogado no testemunho, acrescentando que “seria a última pessoa a perguntar” ao seu cliente “a razão da urgência, a menos que houvesse uma razão para suspeitar que algo estranho estava a acontecer (e não foi esse o caso, como vos expliquei)”.

Com base em vários documentos e sobretudo num email que obteve, o investigador garantiu no relatório que “qualquer decisão” sobre o dividendo de €131,5 milhões transferido para a Sonangol e para a Exem de Isabel dos Santos “não foi tomada a 14 de novembro de 2017, mas antes na (tarde) noite de 15 de novembro de 2017, muitas horas depois de Isabel dos Santos (e Sarju Raikundalia e Manuel Lemos) terem sido demitidos de diretores da Sonangol”.

Ao longo de vários meses de investigação, Willem Andel conduziu sempre o caso no sentido de verificar quando foram dadas e executadas as ordens de pagamento e por quem. Em causa estavam várias transferências de muitos milhões de dólares efectuadas das contas da Sonangol para empresas controladas por Isabel dos Santos e pelo marido. Num dos casos, quase 38,2 milhões de dólares (€36 milhões) foram transferidos, alegadamente por ordem de Isabel dos Santos e Raikundalia, da conta do Eurobic/Sonangol para a conta Emirates NBD/Matter Business Solutions (empresa com sede no Dubai).

“Das horas em que os emails foram enviados (às 18h01 e às 20h43 de 15 de novembro de 2017), parece que a ordem de pagamento foi dada – e o pagamento efectuado – muitas horas depois de Isabel dos Santos ter sido despedida como presidente da direcção da Sonangol (e Raikundalia como CFO)”. Na altura dos pagamentos, a empresária Paula Oliveira e Mário Leite da Silva eram os directores da Matter, mas a mulher era o único accionista da empresa registada no Dubai poucos meses antes, a 1 de fevereiro de 2017, conforme os dados oficiais da DMCC, a autoridade do registo de empresas nos Emiratos.

Quando foi questionado pelo investigador a 30 de maio do ano passado sobre a relação entre Isabel dos Santos e Paula Oliveira, Leite da Silva disse: “Eram amigas”, mas depois acrescentou que Isabel dos Santos não a tinha escolhido por causa da amizade. De resto, foram os dois directores da Matter que remeteram para a Sonangol Ltd., uma subsidiária inglesa da Sonangol, 40 facturas datadas de 2 de novembro de 2017 – 36 com um total de €23,55 milhões e quatro com 1,14 milhões de dólares (hoje, €1,1 milhões). Depois, a 15 de novembro, seguiram mais 15 facturas: 12 com um total de €6,25 milhões e três com mais 2,03 milhões de dólares (€1,9 milhões. Destaque ainda para mais oito faturas, enviadas a 16 desse mês, mas datadas de 14 de novembro de 2017, com um total de 19,65 milhões de dólares (€18,5 milhões).

Antes de o relatório estar pronto e instado a comentar algumas das conclusões a que tinha chegado o investigador, Mário Leite da Silva reconheceu que emitiu 143 facturas à Sonangol, a maioria das quais antes da assinatura do acordo entre a Matter e a Sonangol, justificando que a implementação do projeto de reestruturação da Sonangol fora aprovada em março de 2017 pela direcção da empresa com efeitos a partir de junho de 2016.

“Este comentário não retira o facto de ser altamente invulgar que um acordo com um terceiro ‘genuíno’ noutra parte do mundo (Dubai), no valor de muitos milhões de euros, seja concluído oralmente e só seja posto por escrito muito tempo depois e quando muitos milhões já foram pagos. Este curso dos acontecimentos cria, no mínimo, a aparência de que a Matter não era um terceiro real, mas um terceiro controlado por Isabel dos Santos, o que torna a aparente amizade entre Dos Santos e Paula Oliveira ainda mais grave”, concluiu depois o investigador.

O ENCONTRO DISCRETO NO DCIAP

No entanto, quando foi ouvido no processo, Leite da Silva fez questão de enviar ao investigador holandês um dossiê que alegadamente comprovava uma série de pagamentos feitos pela Matter após 16 de setembro de 2017 a várias equipas de consultores (ver texto pág. 41), nomeadamente da Boston Consulting Group (terão recebido quase 13,3 milhões de dólares, cerca de €12,5 milhões), da PWC (cerca 8,5 milhões de dólares – €8 milhões), da Mckinsey (perto de 9,6 milhões de dólares – €9,1 milhões) e ainda do escritório de advogados VdA, Vieira de Almeida (cerca de 1,4 milhões de dólares – €1,3 milhões) e também de entidades alegadamente controladas por Isabel dos Santos como a Fidequity/Santoro (1,9 milhões de dólares – €1,8 milhões) e a Odkas (cerca de 6,1 milhões de dólares – €5,8 milhões).

De novo, o investigador respondeu que o problema não eram os pagamentos, mas o facto de terem sido feitos inicialmente para a Matter após a queda da direcção da Sonangol. Também ao MP português, o gestor Leite da Silva pediu para ser recebido de forma informal no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) pelos procuradores Rosário Teixeira e Anabela Furtado. O sigiloso encontro foi aceite e durou mais de três horas, tendo o antigo homem de confiança de Isabel dos Santos entregado dois sacos grandes carregados de documentos e respondido a todas as perguntas dos investigadores que só o tinham constituído arguido (e sem declarações) num dos processos autónomos das investigações portuguesas centradas em Isabel dos Santos.

A SÁBADO não apurou os temas exactos da conversa ocorrida no DCIAP, mas é natural que não tenha andado longe do que é descrito em várias passagens do relatório holandês sobre os negócios de Isabel dos Santos que estão a ser investigados em Angola, Portugal e nos Países Baixos. Como aconteceu no seguinte diálogo:

Mário Leite da Silva (MLS): “(…) Esperaza (…), juntamente com os serviços administrativos e os advogados, enviaram os esboços com o dia em que os documentos foram redigidos (15 de novembro). Depois foram alterados para reflectir a data em que as decisões foram efectivamente tomadas, ou seja, a 14 de novembro”.

Willem Andel (WA): “Mas quem fez esta mudança?”

MLS: “Não me consigo lembrar disso. Como vos disse anteriormente, todos os membros da direcção da Esperaza, o pessoal da Sonangol e representantes da Sonangol estiveram juntos na sede da Sonangol [Luanda] nesse dia. Tanto quanto sei, depois de receber os documentos assinados, o sr. Brito Pereira (…) não levantou qualquer questão.”

WA: “Diz ‘nesse dia’. É a 15 ou a 16? Porque é que recebeu os documentos algumas horas após o encerramento do dia útil, no dia 15? Segunda pergunta: a que advogados se refere (…)?”

MLS: “Esse dia significa 15 de novembro de 2017.”

WA: “Isso significa que a direcção da Esperaza, o pessoal da Sonangol e os representantes da Sonangol estiveram todos presentes no escritório depois das 19h30 do dia 15? É disso que se lembra? Quem do pessoal da Sonangol estava lá nessa noite? O Sr. Carvalho [Kid dos Santos Carvalho, director A da Esperaza] e o Sr. Veloso [Jacinto Manuel Veloso, director A da Esperaza] também lá estavam?”

MLS: “Lembro-me que estavam a Sra. Isabel dos Santos e, pelo menos, alguns dos seus funcionários (não me lembro dos nomes) e de, pelo menos, alguns dos membros do Conselho de Administração da Sonangol EP. E o novo Conselho de Administração da Esperaza e alguns funcionários administrativos dos membros do Conselho de Administração da Sonangol (mais uma vez não me lembro dos nomes) estavam lá. Não sei se o sr. Carvalho e/ou o sr. Veloso [foram afastados da Esperaza por Isabel dos Santos] estiveram lá, na sede da Sonangol, mas posso confirmar que eles não estiveram comigo.”

É atrás deste quadro temporal de decisões, dos seus intervenientes e do destino final de muitos milhões de dólares que os procuradores Rosário Teixeira e Anabela Furtado também andam, sobretudo para completarem o circuito financeiro após o dia 6 de fevereiro de 2018, quando €52,6 milhões foram transferidos da Exem para a sociedade anónima Terra Peregrin, que tinha conta também no Eurobic e que, mais de dois anos e oito meses depois, a 20 de outubro de 2020, ainda possuía €28,6 milhões. “Para onde foi o resto do dinheiro não é claro”, escreveu o investigador holandês.

Para Willem Andel, após ter sido despedida às 13h do dia 15 de novembro de 2017, Isabel dos Santos montou uma operação em colaboração com Leite da Silva, Raikundalia, Brito Pereira, Manuel Lemos e um alto quadro do Eurobic (Nuno Ribeiro da Cunha, que depois se suicidou em Lisboa), tendo conseguido que em dois dias fossem feitas transferências num total de cerca de 129 milhões de dólares (€122 milhões de euros hoje), dinheiro retirado da Sonangol e transferido para empresas controladas por Isabel dos Santos e pelo marido.

Por isso, o relatório holandês considerou que as decisões alegadamente tomadas por Isabel dos Santos e os seus homens de confiança foram nulas, até porque houve casos em que aconteceram de forma retroactiva. Segundo esta versão, foi nula a resolução de pagar quase €132 milhões em dividendos. “Numerosas pessoas (jurídicas) cooperaram neste curso desconcertante dos acontecimentos, o que resultou em que Dos Santos tenha obtido de forma fraudulenta acesso a €52,6 milhões de fundos da Esperaza”, concluiu Andel.

Questionado também pela investigação holandesa a 31 de maio do ano passado, o advogado Brito Pereira garantiu que não sabia que, quando esteve reunido com Isabel dos Santos na noite de 15 de novembro, esta já tinha sido despedida da Sonangol. O investigador insistiu dizendo-lhe que, presumia que se Brito Pereira soubesse, como bom advogado que era, teria dito: “Desculpe, mas não posso fazer isto.” “Claro que sim, claro que sim”, respondeu o advogado, com o investigador a insistir como é que era possível que não suspeitasse de nada, pois naquele dia tinha ocorrido o despedimento de Isabel, a nomeação de novos directores e a decisão sobre os dividendos. Aliás, estando o advogado no centro de tudo, porque é que não pensou “Uau, isto são muitas coisas num dia”? Brito Pereira respondeu: “Mais uma vez, não foi surpreendente porque estas coisas foram discutidas durante anos, muitos anos (…) Se me perguntarem se são muitas coisas e se eu devia ter perguntado ou sabido melhor, sim, isso é claramente o que eu teria feito hoje. Isso é certo.” SÁBADO

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