O PRIMEIRO DIA DO RESTO DA VIDA DE EDUARDO DOS SANTOS
Luanda – Ganhou a longa guerra civil mas não ganhou a batalha económica. Durante as quase quatro décadas em que esteve no poder a corrupção tornou-se endémica, mas, ao contrário da maioria dos dirigentes africanos, abandonou voluntariamente o poder.
DN
Presidente de Angola entre 1979 e 2017, José Eduardo dos Santos deixa neste sábado a liderança do partido no poder, o MPLA, um ano antes do que inicialmente anunciara. A mudança na direcção do partido no VI Congresso (extraordinário), que hoje decorre em Luanda, é o mais recente exemplo que Eduardo dos Santos, de 76 anos, familiarmente conhecido como Zedu, não tem condições para fazer pesar a sua sombra sobre o sucessor.
O que, aliás, ficou claro desde o início da presidência de João Lourenço, com medidas em que, de forma clara, pôs em causa decisões de Eduardo dos Santos para, no momento seguinte, afastar os filhos deste de posições centrais na economia e na sociedade angolanas. Isabel dos Santos foi exonerada da presidência da petrolífera Sonangol e Filomeno dos Santos da direcção do Fundo Soberano, tendo como pano de fundo gestão irregular, no primeiro caso, e acusações de fraude no segundo.
Noutro plano, a televisão pública, TPA, rescindiu o contrato de gestão de dois dos seus canais (o Canal 2 e a TPA Internacional) com a empresa de dois filhos de Zedu, denunciando o “carácter leonino e abusivo dos contratos em causa”.
Pouco depois da tomada de posse a 26 de setembro de 2017, João Lourenço iniciava uma longa série de exonerações em que, significativamente, uma das primeiras foi a das administrações de todas as empresas públicas de comunicação social, como a TPA, Rádio Nacional de Angola (RNA), Edições Novembro (proprietária do Jornal de Angola) e agência Angop, que sucedeu a 9 de novembro. O novo presidente tornava claro que seria senhor de si próprio e autónomo face aos interesses instalados e aos nomeados pelo seu antecessor. Como ficou evidente com a vaga de mudanças na diamantífera nacional, no banco central, nos órgãos de justiça e segurança.
No início da semana, um ex-alto dirigente do MPLA e antigo primeiro-ministro, Marcolino Moco, em declarações à Angop, caracterizava a situação em que João Lourenço chegou ao poder”, não hesitando em qualificar como “golpe” o “espartilho” em que Zedu “queria deixar amarrado nos domínios políticos, económico e militar-securitário” o seu sucessor.
Como notava nesta sexta-feira o académico e historiador Fernando Manuel, citado pelo Jornal de Angola, João Lourenço tem protagonizado “acções corajosas” como “ter mexido nas chefias militares e nos órgãos de Defesa e Segurança, medida que lhe estava vedada, a coberto de um decreto presidencial aprovado às pressas, pouco antes da sua investidura”. Um decreto a evidenciar que Eduardo dos Santos e aqueles à sua volta não se mostravam dispostos a abdicar tranquilamente do poder e da influência acumulados desde que o então jovem engenheiro de petróleos, aos 37 anos, chegava à presidência em setembro de 1979, na sequência da morte de Agostinho Neto, o primeiro presidente do país após a independência em 1975.
Para Alex Vines, analista da Chatham House citado pela AFP, a “transição foi acidentada”, com momentos de verdadeiro “braço-de-ferro”. Em dezembro de 2017, Zedu chegou a comentar: “As mudanças são necessárias mas não devem ser muito radicais.” Em 2008, quando estava ainda no auge do poder, Eduardo dos Santos era descrito pelo The Economist como ser “o centro de uma rede de clientelismo que lhe permite apaziguar os conflitos de interesses e reforçar a sua posição”.
Se figuras do MPLA e o próprio partido não têm poupado elogios ao “militante número um” e ao “arquitecto da paz”, o que foi sucedendo desde setembro de 2017 e o que foi sendo divulgado, a começar nos media oficiais, revelam estar-se perante uma rotura que, de algum modo (e apesar das homenagens), compromete a “dignidade” com que o anterior presidente disse querer deixar a vida pública.
Uma “dignidade” comprometida também pelo estado em que deixa a economia do país, ainda dependente do petróleo. Angola teve de pedir ajuda financeira ao FMI (4,5 mil milhões de dólares), os indicadores mostram fraco crescimento económico (1% em 2017, segundo o FMI), alto desemprego (20%, embora tenha decrescido nos últimos anos) e inflação elevada (24,7%, na previsão do FMI para 2018). Tudo isto apesar de Angola ser o segundo maior produtor de petróleo em África, a seguir à Nigéria. Mas, por outro lado, é a dependência do petróleo que fragiliza a economia angolana. Um problema que Eduardo dos Santos não soube ou não pôde resolver. Como continua por resolver um real défice na questão dos direitos humanos e dos abusos de poder pelas autoridades.
Assim como foi durante a sua permanência no poder que o país se tornou um dos mais afectados pelo fenómeno da corrupção e com a economia dominada por uma pequena oligarquia. Em 2017, Angola ocupava a 167.ª posição numa lista de 180 países avaliados pela Transparência Internacional. Com repercussões no quotidiano de todos. Referia nesta semana à Lusa um funcionário público que “deixou de haver amor” e “união entre os angolanos”. E Marco Quipeia define até o marco temporal da mudança: “Depois da paz, ficou cada um a procurar o seu modo de vida.”
É a paz que acaba por ser o legado maior que Eduardo dos Santos deixa a Angola. Ao triunfar na longa guerra civil (1975-2002) sobre a UNITA, entretanto transformada em partido político e principal força da oposição, Zedu passa a ter condições para tornar Angola um país viável e apostar no desenvolvimento. Como referiu à Lusa o académico e analista Jonuel Gonçalves, o então presidente “montou um bom dispositivo para ganhar a guerra – única forma de acabar com ela – e, quando a ganhou, não anulou o adversário, deixando-lhe espaço político. Não sei se fosse outro o vencedor as coisas se passariam da mesma forma”.
Com a paz, Eduardo dos Santos e o MPLA assumem políticas mais pragmáticas e permitem a abertura de Angola à iniciativa privada e à economia de mercado.
Agora que olha a baía de Luanda a partir da sua residência no bairro de Miramar, Zedu pode sentir-se sossegado com o futuro. Ainda que talvez não todos os membros da sua família. Ao contrário da grande maioria dos presidentes africanos, como se viu com os recentes exemplos de Robert Mugabe (afastado pelos militares) ou de Jacob Zuma (forçado a sair pelo seu partido, o ANC), ele deixou voluntariamente o poder.