A MORTE DE NANDÓ E A NECESSIDADE DE TRANSIÇÃO POLÍTICA EM ANGOLA
Quando, no Huambo, durante um debate no Instituto Sol Nascente, comparei o MPLA ao Partido Revolucionário Institucional do México, não o fiz por mero exercício retórico. Fi-lo porque a História, quando ignorada, tende a repetir-se sob formas cada vez mais trágicas. O PRI governou o México durante 71 anos, sustentado por uma complexa rede de interesses, lealdades forçadas e um discurso de estabilidade que, com o tempo, se revelou vazio. O seu colapso começou quando essas engrenagens internas deixaram de funcionar, sobretudo no momento em que um candidato fora do consenso da direcção ousou disputar o poder. A resposta não foi política nem democrática, mas violenta: eliminar o problema para preservar o sistema.
Angola, guardadas as devidas proporções, aproxima-se perigosamente desse mesmo ponto de inflexão. O MPLA, no poder desde 1975, enfrenta hoje não apenas o desgaste natural de décadas de governação, mas uma crise mais profunda: a incapacidade de lidar com a diferença, com a pluralidade interna e com a ideia de alternância. Desde que Higino Carneiro manifestou a intenção de concorrer à presidência do partido, tornou-se evidente que a actual direcção tem enormes dificuldades em aceitar a competição como parte normal da vida política. Quando um partido deixa de tolerar a divergência interna, deixa também de ser um espaço político e transforma-se num aparelho de autopreservação.
A governação de João Lourenço, fortemente marcada pela influência dos serviços de inteligência sob Fernando Garcia Miala, não conseguiu gerar consensos nem dentro do MPLA, nem fora dele. Pelo contrário, assistimos a um retrocesso significativo no campo dos direitos, das liberdades fundamentais e da abertura democrática. O Estado autoritário não apenas se manteve: fortaleceu-se. E o dado mais revelador deste processo é que a repressão já não se dirige apenas à oposição tradicional, mas também a figuras históricas do próprio MPLA que não se alinham com a actual direcção.
Higino Carneiro, Fernando da Piedade Dias dos Santos “Nandó” e Dino Matross representam mais do que nomes individuais; representam memórias, equilíbrios e uma legitimidade histórica que incomoda. Quando essas figuras passam a ser tratadas como inimigos internos, o partido deixa de funcionar como comunidade política e passa a operar segundo a lógica do medo. A morte de Nandó, num contexto em que o discurso presidencial se tornou cada vez mais inflamado contra correligionários, caiu como uma bomba moral e política. Não se trata apenas de uma perda humana, mas de um momento que obriga à reflexão: até onde pode ir um poder que já não reconhece limites?
Enquanto isso, do outro lado do tabuleiro político, a UNITA consolida-se como a força que mais cresce desde 2012, conquistando praças eleitorais mesmo em contextos marcados por suspeitas de fraude. Mais do que números, o que chama atenção é a sua actual liderança, que aposta numa diplomacia política orientada para uma transição pacífica, negociada e responsável. Num país traumatizado por décadas de guerra e autoritarismo, esta disposição para o diálogo deveria ser vista como uma oportunidade histórica, não como uma ameaça.
A tragédia é que a actual direcção do MPLA parece apostar na estratégia oposta. Incapaz de resolver os problemas estruturais do país por via do diálogo, prefere o caminho do endurecimento, do caos controlado, da intimidação como método de governação. Ainda assim, há resistências. Há dentro e fora do MPLA vozes que compreendem que a transição política não é sinónimo de vingança, mas de reconciliação nacional. Dino Matross, Higino Carneiro e o próprio Nandó, em vida, simbolizaram essa consciência de que Angola só avança se se reconhecer como uma comunidade plural, e não como propriedade de um grupo.
O pano de fundo social torna essa urgência ainda mais dramática. A economia está estagnada, a dívida pública cresce, o PIB não acompanha as necessidades da população, enquanto a pobreza se alastra de forma obscena. Jovens sem perspectivas, famílias a disputar restos em contentores de lixo, cidadãos forçados à emigração ou à mendicidade. E, apesar desse cenário, o poder insiste em bloquear as autarquias, recusa a despartidarização das instituições, nega a separação efectiva de poderes e mantém uma lógica centralizadora e intolerante que criminaliza o pensamento diferente.
Do ponto de vista filosófico, o problema de Angola não é apenas económico ou administrativo; é ético e sistémico. Um regime que não consegue produzir bem-estar, nem esperança, perdeu a sua justificação moral. A política, ensinava Aristóteles, existe para promover a vida boa em comunidade. Quando ela passa a produzir medo, exclusão e miséria, torna-se ilegítima, mesmo que continue legalmente instalada.
Que a morte de Fernando da Piedade Dias dos Santos toque o coração dos militantes do MPLA não como um episódio isolado, mas como um sinal dos tempos. Um convite doloroso, porém necessário, à conversa nacional que tem sido adiada: que Angola queremos? Que futuro desejamos construir? A resposta passa inevitavelmente por um novo contrato social, por alternância política e por uma transição que devolva ao Estado o seu sentido fundamental: servir os cidadãos, e não perpetuar um poder esgotado.
Por Hitler Samussuku


