DISCURSO DO PRESIDENTE DE ANGOLA E DA UNIÃO AFRICANA NO DEBATE DA 80.ª ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES

6c5de1e2-bb21-45f1-b78a-f8d48973997b

O Presidente da República de Angola e Presidente em exercício da União Africana, João Lourenço, proferiu, esta terça-feira, o seu discurso no debate da Assembleia Geral das Nações Unidas.

Eis o discurso na íntegra:

“Sua Excelência António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas,

Sua Excelência Annalena Baerbock, Presidente da 80ª Assembleia Geral,

Excelentíssimos Senhores Chefes de Estado e de Governo,

Distintos Delegados,

Minhas Senhoras, Meus Senhores,

Encontro-me aqui perante Vossas Excelências, na minha qualidade de Presidente da República de Angola e na de Presidente pro- tempore da União Africana, para falar do meu país, das nossas percepções sobre a evolução dos acontecimentos que se registam neste nosso mundo cada vez mais conturbado e abordar também as questões que dizem respeito à África, este continente que mobiliza as nossas energias e forças, para encontrarmos as soluções para o fazer despertar de uma vez por todas para o desenvolvimento.

Permitam-me que felicite Sua Excelência Annaleana Baerbock, pela sua eleição ao alto cargo de Presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, convencido de que a sua experiência e os conhecimentos que acumulou ao longo das diferentes funções que exerceu com grande mestria, vão assegurar o êxito do trabalho que assumiu desde o início deste mês de Setembro.

Felicito igualmente o seu antecessor, Sua Excelência Philémon Yang, pela forma assertiva como dirigiu a Assembleia Geral no último ano, em que colocou todo o seu empenho para fazer funcionar este órgão com louvável eficiência, facto que é merecedor do reconhecimento de todos nós, pelos resultados positivos alcançados no decurso do seu mandato.

Não posso deixar de mencionar Sua Excelência António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, pelo papel que tem sabido desempenhar com um grande sentido de compromisso, em que subjaz a sua apreciável qualidade de homem de diálogo e de paz, no meio das complexidades geopolíticas actuais.

Sra. Presidente,

Excelências,

Transcorreram 80 anos desde que, por imperativos dessa época, um conjunto de países e seus respectivos líderes tomaram a sábia decisão de fundar a Organização das Nações Unidas, que vem conseguindo, desde então, entre momentos mais tumultuosos e outros não tanto assim, desempenhar o seu grande papel de manter a paz e a estabilidade mundial, contribuir para o desenvolvimento da Humanidade, para a preservação e o aprofundamento do respeito pelos Direitos Humanos.

Esta é uma grande conquista dos povos do nosso planeta que não pode ser descurada e nem subestimada por nenhum poder, por líderes políticos ou outros, sob pena de, na base da exacerbação de visões e interesses egocêntricos, deitarmos a perder os benefícios da paz que nos foram legados por mulheres e homens que, ao longo do tempo, nos conduziram até aqui num ambiente de harmonia e de conciliação global.

Este percurso nem sempre foi feito de forma linear, mas nos momentos mais críticos a sensatez sobrepôs-se aos piores impulsos de uma conflagração de grande escala, tendo isto sido possível pelo diálogo contínuo como o único factor capaz de aplanar divergências, superar obstáculos e serenar os espíritos mais conturbados e belicosos.

Nos dias de hoje, estas lições do passado têm um inestimável valor e devem ser as únicas referências a guiar-nos para caminhos que nos levem à solução dos conflitos em África, na Europa, no Médio-Oriente, na América Latina, na Ásia e onde quer que eles existam.

No contexto incerto em que estamos a celebrar o 80º aniversário das Nações Unidas, o tema “Melhor Juntos: 80 Anos e Mais, para a Paz, o Desenvolvimento e os Direitos Humanos”, ganha uma dimensão que nos convida a reflectir sobre o significado profundo do apelo da Senhora Presidente da Assembleia Geral à renovação do multilateralismo e da acção solidária, dentro de um quadro de acções comuns e complementares executadas por uma ONU mais ágil, eficaz e responsável, tal como concebido no roteiro Initiative80 do Secretário-Geral.

Diante destas perspectivas, é urgente que revitalizemos as Nações Unidas e que a façamos sair da intrincada situação em que se encontra, para resgatarmos o papel activo que sempre exerceu e que foi de utilidade inegável, para que durante a Guerra Fria não nos sentíssemos tão próximos de uma conflagração global como ocorre neste momento, com a grande dissonância que se verifica nas relações internacionais.

As principais potências mundiais tendem a caminhar de costas voltadas umas para as outras, distanciando-se dos pontos de convergência mínimos que as fariam manter-se vinculadas ao compromisso de privilegiar primordialmente o diálogo e a concertação.

Os desafios de hoje colocam-nos diante da escolha entre fazer tudo para preservar a paz ou enfrentar a guerra com todas as suas consequências e assim comprometermos o futuro da Humanidade.

Aquelas potências mundiais que no passado jogaram um papel crucial para a libertação da Europa e dos europeus das garras do nazismo, do fascismo e também para a libertação de África e dos africanos do regime do apartheid da África do Sul, não podem comportar-se hoje de forma diferente, agredindo outros países, invadindo e anexando territórios alheios, nem mesmo financiar e organizar a subversão que pode levar ao derrube de governos legítimos, como constatamos actualmente no nosso próprio continente.

Com este precedente perigoso, nenhuma instituição regional, continental ou mundial, terá, daqui para frente, autoridade moral para chamar à razão a qualquer Estado violador dos princípios que regem a Carta das Nações Unidas e o Direito Internacional.

Nós, os africanos de países colonizados durante vários séculos, percebemos melhor do que ninguém a importância da paz, por termos de fazer face diariamente à luta para levar alimentos às pessoas, água potável, saúde, educação e outros bens essenciais fundamentais, o que gera uma sensibilidade especial sobre a incidência nefasta da insegurança e da instabilidade sobre a realização dos nossos objectivos e projectos de desenvolvimento.

Esta realidade agrava-se ainda mais com os múltiplos conflitos e guerras que assolam países e regiões do mundo, de onde esperávamos encontrar cooperação e um intercâmbio frutuoso, a fim de superarmos as nossas dificuldades e contribuirmos com os nossos imensos recursos e capacidades para a prosperidade mundial.

É nesta base que a República de Angola tem procurado prestar uma contribuição honesta e genuína à solução do conflito na região do Sahel, no Sudão e no Leste da República Democrática do Congo, relativamente ao qual as nossas diligências criaram um quadro negocial com soluções de paz que lamentavelmente não se concretizaram em Dezembro de 2024 como era expectável, mas que se mantém como uma plataforma válida para outros esforços que vêm sendo envidados com o propósito de se pôr um fim definitivo a esse conflito.

Sra. Presidente,

Excelências,

Este conflito e tantos outros de que temos memória são, em grande medida, consequência da passividade dos Estados-Membros das Nações Unidas, que se têm revelado muitas vezes inoperantes face às invasões de territórios terceiros e às interferências na ordem interna de países soberanos, que ocorreram nestes últimos anos e que, por não terem merecido uma reação firme, inflexível e assertiva, tornaram-se em factos consumados que estão no epicentro das grandes tensões que se vivem actualmente no mundo.

As consequências disso estão patentes aos nossos olhos no Médio-Oriente, onde o incumprimento sistemático das pertinentes resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre a criação do Estado da Palestina mantém aceso um conflito que se agrava todos os dias e que parece não ter um fim à vista face à desproporcional e violenta acção de resposta e retaliação de Israel, que tendo direito à sua existência como um Estado e a exigir a libertação dos ainda reféns do trágico 7 de Outubro, não se lhe pode contudo permitir que desenvolva na Palestina e particularmente na faixa de Gaza uma política de extermínio de um povo.

O povo palestino, que não pode ser confundido com o HAMAS, porque não há povos e muito menos crianças terroristas, tem exactamente o mesmo direito a um Estado independente e soberano, onde possa fazer valer a sua cultura, cuidar do seu futuro e abrir perspectivas previsíveis e seguras para a sua juventude.

As preocupações em torno deste conflito assumem uma escala ainda maior diante do silêncio, das hesitações e das reações tímidas da comunidade internacional, que parecem legitimar a expansão da guerra para os países da região, corroendo inexoravelmente a autoridade das Nações Unidas.

Nada pior do que a exclusão da delegação da Palestina a este fórum onde teria o direito de fazer ouvir a sua voz como Estado-Membro, à luz dos termos do Acordo de Sede.

A não garantia da presença do Presidente da Autoridade Palestina nesta Assembleia Geral emite um sinal muito negativo, pois encoraja a continuação do genocídio a que todos assistimos impotentes e impunemente, adia a resolução do problema e complica os esforços que vêm sendo envidados para se pôr termo a esse intrincado conflito.

Condenamos veementemente esta posição unilateral, contrária aos princípios que regem as Nações Unidas, da mesma forma que apelamos ao levantamento sem condições do injusto e prolongado embargo contra Cuba, que tem consequências graves sobre a economia e as condições de vida do povo cubano, que luta diariamente para resistir a uma punição que é rejeitada pela comunidade internacional.

Cuba, que desempenhou um importante papel na luta dos povos africanos, que levou ao derrube do regime racista e desumano do apartheid na África do Sul e que, por este facto, foi parte signatária do Acordo de Paz de Nova Iorque de 22 de Dezembro de 1988, que trouxe a liberdade ao povo sul africano e levou à Independência da Namíbia, não pode ser considerada, de forma arbitrária e unilateral, como um Estado patrocinador do terrorismo, à luz das relevantes resoluções das Nações Unidas.

Este modelo de actuação de um pequeno grupo de países, que não se ajusta aos padrões de convivência global minimamente aceitáveis, está na origem das sanções unilaterais e subjectivas aplicadas ao Zimbabwe e à Venezuela, que nenhum outro resultado produz que não seja o sofrimento das populações que, num acto de elevado patriotismo, acabam por se unir em defesa das suas nações.

Sra. Presidente,

Excelências,

A autoridade desta nossa organização, que tem como fonte a Carta das Nações Unidas e o Direito Internacional, deve ser resgatada com urgência, sem narrativas que deixem sobressair a lógica de dois pesos e duas medidas, para que se busquem soluções justas para a guerra na Ucrânia, ou que se reforcem as que estão em perspectiva desde a reunião do Alasca.

Sendo a Ucrânia um país europeu, depois que o Presidente Trump teve o pragmatismo de se encontrar com o Presidente Putin, sem prejuízo da necessidade de haver negociações directas entre a Rússia e a Ucrânia, seria de se esperar que os líderes europeus procurassem, no interesse da paz e segurança da Europa, igualmente dialogar não só com o Presidente Zelensky, como também com o Presidente Putin.

Não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar esta oportunidade, sob pena de, em caso contrário, virmos a assistir a uma escalada com proporções e consequências imprevisíveis não só na Europa, onde as forças vivas devem abandonar os perigosos cálculos assentes na ideia da vitória militar com base na fragilização das capacidades adversárias.

É diante das dificuldades actuais e da crise que o mundo atravessa que a ONU deve ressurgir e passar a ser mais actuante para evitar que se dilua o seu papel como principal entidade de governação global e se transforme numa instituição incapaz de assegurar a paz mundial, sendo nossa responsabilidade, como Estados e Nações soberanas, não a deixar sucumbir.

As Nações Unidas, na sua forma actual, é a única organização com capacidade para agir em nome de todos nós em busca de consensos mundiais a favor da paz e com legitimidade de chamar à razão os Estados-Membros que desvirtuam os seus fundamentos na forma como actuam na cena internacional.

Por isso, devemos preservá-la a todo o custo e adaptá-la às realidades do mundo contemporâneo na base de reformas que se impõem com urgência.

Neste aspecto muito particular, defendo a reforma do Conselho de Segurança nos termos da posição comum africana, plasmada no Consenso de Ezulwini e na Declaração de Sirte, adotados há vinte anos e que preveem dois assentos permanentes e cinco não permanentes para o continente africano num Conselho de Segurança alargado, mais representativo e consentâneo com a realidade geopolítica contemporânea.

Sem este passo imprescindível, que já leva um atraso dificilmente justificável, não poderemos assegurar a concretização do Pacto para o Futuro adotado no ano passado, o qual reconheceu a necessidade urgente de se dotar as Nações Unidas de um Conselho de Segurança mais democrático e equilibrado.

Este Pacto tem a virtude de se constituir numa grande oportunidade para se revitalizar o multilateralismo, tornando-o mais abrangente, para funcionar como uma base de sustentação alargada de discussões a respeito dos temas sensíveis do mundo actual de que destaco, de entre outros também relevantes, as questões sobre o financiamento para o desenvolvimento e o desafio climático.

Sobre matérias relativas ao apoio ao desenvolvimento, há muito que discutir, mas também é justo que se dê realce aos passos recentes que foram dados com a adoção do Compromisso de Sevilha, alcançado na 4ª Conferência sobre o Financiamento para o Desenvolvimento, no âmbito do qual se preconiza a reforma urgente das Instituições Financeiras Internacionais, de modo a torná-las mais representativas, inclusivas e capazes de atender as ingentes necessidades dos países em vias de desenvolvimento, especialmente os de África.

Estou em crer que este instrumento, associado ao Pacto do Futuro, à Convenção Fiscal das Nações Unidas e à Convenção da Dívida das Nações Unidas, ainda em discussão, funcionarão em conjunto como uma plataforma de cariz político, financeiro e normativo, que dará um impulso significativo à concretização dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável.

Senhora Presidente,

Excelências,

É essencial que encaremos a crise climática como a maior ameaça existencial do nosso tempo e perante a qual só atingiremos resultados agindo juntos, coordenados e solidários.

À luz do agravamento contínuo do aquecimento global e das catástrofes naturais cada vez mais violentas e frequentes, tornou-se imperioso que as nações que mais benefícios tiraram do desenvolvimento industrial e económico no passado, assumam plenamente a sua responsabilidade histórica, garantindo, num gesto de justiça climática, financiamento adequado, transferência de tecnologia e apoio à adaptação e mitigação para os países em vias de desenvolvimento.

Os países que têm uma participação residual nas emissões de gases de efeito estufam são os que enfrentam, de forma desproporcional e praticamente sós, os impactos das alterações climáticas, do aquecimento global e dos seus efeitos devastadores sobre a agricultura, a segurança alimentar e a saúde pública.

Perante tais evidências e as responsabilidades que daí decorrem, Angola mantém-se comprometida com o Acordo de Paris e com a implementação de medidas de adaptação e mitigação, alinhadas à Agenda 2030 das Nações Unidas e à Agenda 2063 da União Africana, que consagram o consenso sobre a mobilização de financiamento climático previsível e acessível, destinado a garantir uma transição energética justa e capaz de proteger as comunidades mais vulneráveis.

Esta temática transversal, que exige uma postura de responsabilidade cada vez mais acentuada, quer no âmbito das agendas públicas como nas das grandes corporações industriais, merecerá a devida atenção na Cimeira sobre o Clima COP30 a ter lugar proximamente no Brasil, que acolhe pela segunda vez um evento desta magnitude, ilustrando bem o compromisso e o engajamento deste país com as questões ambientais.

No ano de 1992 no Rio de Janeiro, inaugurou-se a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, o paradigma que se revelou de grande utilidade para discussões cada vez mais profundas que se mantêm até hoje e que, seguramente, na Conferência que se avizinha, nos permitirá a todos dar mais um passo em frente neste longo caminho que teremos que percorrer para atingirmos os grandes objectivos sobre o clima, almejados pela Humanidade.

Excelências,

Volvidos 80 anos desde a fundação das Nações Unidas e após o fim da Guerra Fria, a nossa expectativa era a de que estivéssemos a viver num mundo sem as incertezas actuais e não tão perigoso quanto observamos nos dias que correm.

Vivíamos até ao ano de 1991 num contexto de uma acentuada divisão entre dois blocos ideologicamente opostos, que oferecia, no entanto, um quadro de leitura mais previsível e menos susceptível de deslizar para uma confrontação de grande escala.

Esta retrospectiva não nos deve remeter para a ideia de que a estabilidade mundial só é possível num quadro de rígidas divisões, seja de que natureza for, mas sim para a construção de um quadro de equilíbrio de interesses e de preocupações partilhadas sobre matérias respeitantes à segurança global, capaz de gerar a complementaridade e convergências de todo o tipo, num ambiente de multilateralismo que será a única via capaz de nos salvar de uma hecatombe.

Você não pode copiar o conteúdo desta página