INDIGNAÇÃO E ESPERANÇA: POR UMA ESCOLA DE VERDADE

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Por toda a Angola, vêem-se as mais extravagantes celebrações dos 50 anos da Independência Nacional. Quando se trata de farras, nunca falta dinheiro, mas quando se trata de educar os filhos do povo, que são o futuro da nação, a classe dirigente finge-se de surda e manifesta hostilidade.

É de cortar o coração, estar ali por uns momentos, junto de dezenas de crianças amontoadas debaixo de uma frondosa mangueira, umas sentadas em bancos improvisados, outras no chão, com os cadernos no colo, expostas ao sol inclemente. Quando chover (o que já acontece em algumas regiões), não haverá aulas. O futuro das crianças ficará suspenso porque não há uma cobertura que as abrigue.

Num quadro improvisado, encostado a uma parede alheia, lê-se a numeração de 1 a 40. É o que as crianças da 2.ª classe vão aprender a contar e a escrever nesse dia, na sala anexa do Complexo Escolar n.º 935, da comuna do Cusse, no município da Caconda, Huíla.

Este cenário a que assisto não é uma excepção – é a realidade diária de milhares de crianças.  No ensino primário em Angola – um sector essencial que deveria ser a prioridade das prioridades –, as crianças são cruelmente deixadas ao abandono. Sinto vergonha por nós, como sociedade.

A educação é um direito garantido pela Constituição angolana. Será que o governo entende que está a cumprir esse direito constitucional deixando milhões de crianças à mercê do improviso e do abandono?

Um país que desperdiça milhares de milhões de dólares em contratos bilionários de adjudicação directa, sem concurso público e sem racionalidade fiscal, para servir interesses privados, que mais se assemelham à pilhagem do Estado, não pode alegar que lhe faltam recursos para dar às crianças um tecto. Bastaria que o presidente João Lourenço assinasse menos dois desses contratos para que se pudesse construir milhares de salas de aula dignas em todo o território nacional.

Existem soluções – simples, sustentáveis e de baixo custo – para garantir que todas as crianças estudem pelo menos sob uma cobertura digna. Quanto mais não seja, é fácil criar estruturas temporárias de estrutura metálica, coberturas solares ou lonas resistentes, tudo preparado com a mão-de-obra local e com custos ínfimos face aos montantes despendidos em vaidades celebratórias e no enriquecimento dos confrades.

O problema não está na falta de meios, mas na falta de prioridades. Alguns líderes e famílias da classe dirigente, predadora e esbanjadora, dariam também mostras de alguma humanidade e patriotismo se destinassem às escolas os fundos privados que gastam em grandes casamentos, festas de aniversário e luxúrias várias. Não só construiriam salas de aula em benefício das crianças angolanas, como também ganhariam uma certa legitimidade “na fotografia” da História.

A verdade é dura mas plenamente demonstrada pelos factos: o presidente João Lourenço prefere fortalecer os seus interesses privados a investir no futuro da Nação.

Hoje, mais de três milhões de crianças angolanas em idade escolar estão fora do sistema de ensino. As que conseguem entrar encontram um ensino primário sem infra-estruturas, sem orçamento, sem materiais básicos. As escolas vivem de taxas cobradas aos pais e encarregados de educação – uma situação insustentável e discriminatória.

A educação é um direito humano fundamental e é o mais poderoso motor de desenvolvimento. É ela que cria oportunidades de emprego, reduz a pobreza, aumenta o PIB, melhora a saúde, promove a igualdade de género e a estabilidade social. Mas em Angola, em vez de ser encarada como prioridade, a educação é tratada como um fardo.

As propostas existem. Basta lê-las na carta aberta enviada ao presidente:

            •          Descentralizar e dar autonomia orçamental às escolas primárias para que possam manter-se e funcionar com dignidade;

            •          Reformar os currículos, hoje obsoletos, e ajustá-los à realidade sociolinguística do país, onde milhões de crianças não têm o português como língua materna;

            •          Reduzir o número de disciplinas e concentrar esforços em literacia e numeracia, pois as crianças concluem o ensino primário sem saber ler, escrever ou fazer contas com fluência;

            •          Implementar um sistema nacional de avaliação credível, que permita medir de forma rigorosa a aprendizagem e corrigir falhas;

            •          Mobilizar a sociedade através de uma Campanha Nacional de Educação, com visitas às escolas, escuta activa de professores, pais e alunos, e envolvimento comunitário na conservação das infra-estruturas.

Nada disto exige milagres. Exige apenas vontade política. Exige que a educação seja, de facto, “a prioridade das prioridades”.

As crianças angolanas não podem esperar mais uma década: precisam, hoje, de escolas seguras, de professores preparados, de livros, de carteiras, de condições básicas.

Se o Estado não quer assumir este seu dever, que seja a pressão social, a indignação pública e a mobilização colectiva a impor essa mudança. Porque um país que nega a educação às suas crianças está a condenar-se ao atraso. E um povo que aceita esse destino em silêncio está a abdicar do seu futuro. Este é um grito de indignação e de esperança. Em 50 anos de Independência, estas crianças merecem mais que as sombras de uma árvore: elas merecem escolas de verdade.

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