“PARTICIPEI NO ENTERRO DAS VÍTIMAS DO MASSACRE DE 4 DE JANEIRO DE 1961”

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O então menino não imaginava que um dia viria a ser o soba daquela aldeia que, fruto dos assassinatos em massa, cometidos pelo exército colonial português, ficou registada na História de Angola.

Alberto Magalhães ou soba Teka dia Kinda, que ainda recorda o trágico dia, conta que, fruto da perda de muitos familiares, vive até hoje traumatizado com tudo que testemunhou, quando, disse, “até as lágrimas ganharam cor de sangue, pela forma cruel como foram mortos e enterrados, muitos deles em valas comuns”.

“Eu participei no processo de enterro das vítimas dos massacres de 4 de Janeiro de 1961. Assisti. Eu é que carreguei as enxadas no ombro. Aqui saíram 50 pessoas, das quais 30 conheceram a morte. Os que não foram apanhados eram 20”, lembra o soba.

Dos 20 que tinham escapado, prosseguiu, tiraram duas pessoas para ir à busca de enxadas para o processo de enterro. “Também aproveitei tirar duas enxadas e vim seguir os adultos até aqui. Quando cheguei, isso tudo era povo no chão. Cheguei aqui, fiquei de pé, o capitão do exército português que dirigiu o massacre olhou para mim e falou assim: Óh rapaz, passa por cima das pessoas (mortas), com medo comecei a passar, fiquei de pé com as enxadas, ele começou a dividir pão para aqueles homens que levantaram, borrados com sangue”, lembra Alberto Magalhães, hoje, Soba Teka dia Kinda.

REGEDOR NZAGE PERDEU MUITOS FAMILIARES

O regedor Nzage ya Languela tinha apenas 10 anos, na altura dos acontecimentos do 4 de Janeiro de 1961.

Apesar de não ter testemunhado os factos, diz que perdeu muitos familiares.

O soba lamenta o facto de não existir um marco que lembre às gerações mais novas a coragem dos camponeses que reivindicaram os seus direitos e foram assassinados pelo exército colonial português.

“Aqui devia brilhar. Devia ser um local de atracção nacional. Aqui morreu muita gente, outros desapareceram mata fora e nunca mais apareceram. Na altura, eu tinha 10 anos de idade. O meu pai me tirou para ir estudar no internato, na Missão dos Bângalas”, conta.

Mas, conta que os acontecimentos do 4 de Janeiro de 1961 foram provocados pelo sofrimento imposto aos camponeses.

“Quando os portugueses chegaram aqui, estabeleceram regras que passavam pelo pagamento dos impostos. Tudo isso passou por encontros preliminares com os sobas, regedores e a população”, disse o regedor Nzage, 74 anos.

A esse pedido, prosseguiu, o povo reagiu negativamente porque não tinha nada para pagar os referidos impostos.

Não obstante isso, referiu, alguns mais velhos foram trabalhar no contrato no Dange Quitexe e na Gabela para depois virem pagar os impostos.

“Os que ficaram não tinham como pagar os impos- tos. Foi daí que veio o trabalho do algodão para ver se todos pudessem pagar os impostos”, salientou.

Enquanto se cultivava o algodão, salientou, as pessoas trabalhavam ainda noutras áreas, como o trabalho na casa do administrador, no campo, na estrada e outros.

“O sofrimento foi demasiado. No meio de tudo isso, ouviu-se que  Marien Ngouabi e Lumumba estavam a vir do Congo para prestar solidariedade à população local.

A população ficou inspirada, ganhou outra energia e esperança pela liberdade e independência”, recorda.

A tropa do exército colonial português, ao se aperceber das informações, prosseguiu, movimentou homens e meios e foram até ao Quela, onde passaram a noite no Quela.

Conta ainda que as tropas portuguesas apelaram à população para não se movimentarem da sua aldeia para uma outra localidade.

“Quando eram 5 horas, eles partiram da sede (Quela) em direcção à aldeia do Teka dia Kinda. A população já estava informada sobre a chegada dos mesmos e a população ficou reunida, incluindo pessoas que saíram de outras localidades como Marimba, Kunda dia Base, Caombo, Luquembo e até de Luanda também vieram pessoas”, recordou.

Durante o percurso, a caravana do exército português encontrou uma árvore deitada na estrada, que inviabilizava a passagem dos meios. Conta que mandaram chamar o velho Mancuri para ajudar na remoção do tronco, mas ele rejeitou e disse: “Isso não, a partir de hoje terminou a escravidão e se quiserem mandem recado às vossas esposas que ficaram em Portugal para virem aqui ajudar”. Diz que a resposta do Velho Mancuri estava inspirada na vinda de Lumumba.

A população da aldeia veio manifestar solidariedade ao Velho e gritou em tom alto que não queria mais nada com os colonialistas portugueses.

Alguns aldeões se fizeram acompanhar de zagaias, outros com catanas e machados para fazer frente ao exército português, munido de espingardas automáticas.

“Foi daí que surgiu a guerra. Depois do primeiro disparo, a população inspirada gritou em uníssono “mbote, mbote, mbote”. Quando fizeram o segundo disparo também para o ar, houve a mesma manifestação do povo. Vendo a resistência da população, as tropas do exército português começaram a disparar contra a população da aldeia”, disse.

DIFICULDADES

A aldeia do Teka dia Kinda está situada a 15 quilómetros da sede municipal do Quela, cuja via encontra-se em estado avançado de degradação.

“Não temos transporte aqui. Nós não estamos a falar de comer. Estamos a falar das vias de circulação que não estão bem. Estamos a falar da falta de transporte, de um posto de saúde e de escola”, disse o soba Teka dia Kinda.

Segundo a autoridade tradicional, no presente ano lectivo os professores leccionaram por apenas quatro dias. “Os professores, cada um ensinou apenas quatro dias e foram embora. Algumas crianças do Teka estudam no Zage, a cinco quilómetros daqui e outras crianças em idade escolar acompanham os pais à lavra porque não estudam”, referiu.

Soba Teka dia Kinda ainda tem registado na sua memória a última visita do Presidente Agostinho Neto à aldeia do Teka dia Kinda. “O saudoso Presidente Neto fez o lançamento de pedra para a construção de um bairro social aqui, aquando da sua última visita à província de Malanje. Até hoje, as casas não foram construídas”, lamentou.

“Queremos que se meta aqui o bairro social. Isso já estava limpo. Vamos falar mais o quê?”, questionou o soba.

Por sua vez, o soba Nzage lamenta o estado actual das coisas e diz não haver progressos. “As coisas estão na mesma. Olha a estrada. Não há transporte. Daqui para o Quela, pagamos 2 mil kwanzas e para Malanje, 6 mil kwanzas. Queremos solução nisso. Nós produzimos muito, mas, não temos como escoar a produção”, lamentou.

FALTA ATENÇÃO ESPECIAL

Coutinho Meio Dia nasceu, cresceu e continua a viver na aldeia do Teka dia Kinda. Ele diz que o bairro está associado ao passado histórico do país, devido aos acontecimentos do 4 de Janeiro.

“Este bairro está ligado à história do processo de luta de libertação do país, mas nós estamos a ver que nem tudo anda bem. Aqui no bairro não temos escola, não temos posto médico e por conta disso atravessamos muita dificuldade”, disse o professor reformado.

Meio Dia conta que perdeu muitos familiares naquele triste acontecimento, que devia merecer atenção especial porque deram o seu contributo pela Independência do país.

Acrescenta que o actual estado da estrada que liga a sede municipal à aldeia do Teka dia Kinda não é dos melhores e, como resultado, muita produção do campo acaba por se deteriorar por falta de escoamento.

“Nós produzimos muito, desde a ginguba, o bombóm, o feijão, o inhame, mas tudo acaba por se estragar porque não temos como levar para outras localidades para comercializar. A estrada não oferece condições para os carros circularem, então, estamos a pedir que olhem para a nossa situação”, solicitou.

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