“NITO ALVES FOI UMA VÍTIMA DO MAQUIAVÉLICO AGOSTINHO NETO”
Num depoimento ao Esquerda.net, o engenheiro Jorge Fernandes, sobrevivente do 27 de Maio, relata como viveu os tempos da independência, da organização do MPLA em Angola, e os dois anos e meio de prisão e campo de trabalhos forçados sem acusação nem julgamento. E partilha as conclusões políticas a que chegou após 40 anos.
LUIS LEIRIA
Há três datas na vida política de Jorge Fernandes, o “Basofinhas”, em Angola, que o marcaram profundamente. A primeira é 26 de maio de 1977, a véspera do nefasto 27 de Maio, quando ele percebeu que “ia haver bernarda”. A segunda é 30 de maio do mesmo ano, quando é preso diante dos colegas na cantina da Faculdade, com grande aparato militar. A terceira é 19 de agosto de 1979, quando foi libertado, depois da visita de uma “embaixada de três dignatários do MPLA, apresentados como os juízes do tribunal popular revolucionário, que o trataram por “camarada” e lhe disseram que ele era “um quadro valioso para o país”, entregando-lhe um mandato de soltura e um pedido para não guardar rancores. Aqui fica o relato de um sobrevivente do 27 de Maio de 1977 em Angola.
A PRISÃO
Segunda-feira, 30 de maio de 1977. Quando Jorge Fernandes, acompanhado pelo seu amigo José Fuso, entrou na cantina da Universidade de Luanda, onde almoçava habitualmente, fez-se um silêncio pesado entre os estudantes na fila para a comida, na fila para comprar a senha, e nas mesas. Os dois localizaram entre os comensais os seus camaradas do MPLA – e também adversários políticos nas disputas internas – João Beirão, Henrique Beirão, Henrique Morais, Zé Guerreiro. Um deles levantou-se e saiu. José Fuso segredou a Jorge: “Olha, aquele já foi telefonar”.
Dito e feito. Passado pouco tempo, entrou um comandante na cantina, escoltado por uns faplas1 armados, e dirigiu-se a eles: “Boa tarde. Como é que se chama?” “Jorge Fernandes”. O comandante olhou para um papel que trazia e fez cara de espanto, porque lá estava escrito “Basófias” (a alcunha de Jorge). Mas recompôs-se: “Olhe, acompanhe-nos”. Os dois subiram para um jipe cheio de soldados, e ainda ouviram o comandante censurá-los: “É pá, vocês, miúdos, o que é que andaram a fazer?” Jorge tinha 23 anos e José Fuso, 21.
No exterior, o quarteirão da cantina estava todo cercado de tropa, como se os “miúdos” fossem perigosos. O jipe levou-os para o tenebroso edifício do Ministério da Defesa, cujos calabouços já tinham a fama de serem depósitos de onde só se saía para a morte.
BASÓFIAS E BASOFINHAS
Flashback. Até ser vítima da primeira onda de repressão que se abateu sobre os chamados “fraccionistas” do MPLA após o 27 de Maio de 1977, Jorge Fernandes viveu uma trajectória de activismo político que começara ainda antes do 25 de Abril, a par com a prática do basquetebol, a sua primeira grande paixão. “Quem começou a ter ligação à política foi o meu irmão, Carlos Lourenço, um ano mais velho”, recorda. “Quando ele ouvia o ‘Angola Combatente’ [o programa de rádio do MPLA, transmitido em ondas curtas] eu também ouvia. À noite, por vezes eu chegava do treino do basquetebol e o meu irmão estava a ouvir o serviço em português da Rádio Moscovo, que também transmitia para África.”
Do irmão também herdou a alcunha. “Ele era o Basófias, e eu, o Basofinhas. O nome pegou de tal maneira que às vezes era identificado, até na imprensa que cobria o desporto, como o Jorge Basófias”.
Em 1971/72, quando Jorge entrou para a Faculdade de Engenharia, no curso de civil, “os estudantes universitários eram uma massa branca, de elite, pontilhada com alguns negros.” Também havia negros da pequena-burguesia urbana e principalmente de Luanda, Benguela, que vinham estudar para a universidade, mas eram poucos. “Eu costumo lembrar que na hora do almoço, na cantina, era muito difícil encontrar lugar para estacionar um carro. E a comida da cantina era boa. Às vezes o prato do dia era meia lagosta. O Bar da cantina parecia um Pub grande, com música ambiente, ao lusco-fusco… O grosso dos estudantes universitários era classe A.”
25 DE ABRIL EM LUANDA: COMITÉS POR TODO O LADO
Quando chega o 25 de Abril e o regime colonial inicia a sua desagregação, o MPLA, com a saída dos seus militantes das cadeias, recomeça a organizar-se. Os combatentes da Primeira Região Político-Militar do MPLA, onde Nito Alves teve um papel de destaque, vieram para Luanda e foram eles que, numa primeira fase, organizaram a resistência contra os colonos reacionários que tentavam fazer uma independência branca através de uma organização paramilitar, a OPVDCA (Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil de Angola) responsável por massacres nos musseques (bairros de lata da periferia).
Foi um período fértil em termos de organização. Em Luanda, “por todo o lado se formam comités onde estava malta simpatizante do MPLA, mas desgarrados, não tinham ligação orgânica nem entre eles, nem com os órgãos dirigentes do MPLA, no exterior”, recorda Jorge Fernandes. Os comités podiam surgir espontaneamente. “Eu notava que o meu vizinho também ouvia o ‘Angola Combatente’ e começava a conversar com ele da política, e surgia a proposta: ‘Vamos formar um comité de apoio?’ Duas, três pessoas formavam um comité.” Dava-se um nome de código. Os mais antigos e mais fortes eram os Comités Amílcar Cabral (CAC’s), mas também apareceram os Henda, José Estaline e outros. “As ações não eram organizadas, não havia ligação orgânica entre eles”.
Na Universidade, antes de o MPLA entrar oficialmente em Luanda e se organizar, já havia comités, porque já havia simpatizantes do MPLA.
ESTUDANTES, PROFESSORES E FUNCIONÁRIOS A GERIR AS FACULDADES
Na universidade, depois do 25 de abril e já no período de 75/76, foi preciso uma luta muito grande para manter abertas as faculdades. O Ministro da Educação do Governo de Transição, formado após os Acordos do Alvor, era da Unita (Jerónimo Wanga) e queria desmantelar as estruturas académicas existentes. Argumentava que era um ensino colonial, mas a razão principal era que a Universidade se inclinava maioritariamente para o MPLA. A FNLA tinha a mesma política.
Mas essa situação durou pouco tempo porque o MPLA venceu a batalha de Luanda e expulsou estes movimentos da capital. Nessa altura, o próprio MPLA encarregou-se de preencher o vazio e formaram-se novos órgãos de gestão. “Eu era um dos dois representantes dos estudantes no órgão de gestão da faculdade de engenharia” explica Jorge Fernandes. Manter as faculdades abertas e a funcionar, porém, não era fácil, porque não há faculdades sem professores e muitos tinham partido ou estavam a preparar-se para isso.
“Tentámos convencer os professores catedráticos a ficarem lá. Foi difícil, mas conseguimos manter um núcleo duro do corpo docente, nas principais cadeiras – estou a falar de engenharia civil. Nós tínhamos um professor catedrático que recebeu uma medalha de ouro do MIT, o engenheiro Guerra Marques! Esse, de qualquer forma não sairia porque era nacionalista ferrenho. Mas junto dos outros professores, fizemos um trabalho de convencimento. E eles foram ficando, até depois da independência. Muitas vezes durante a semana passava as noites na casa de professores a jogar ao king e na conversa…” Dessa forma, viu-se obrigado a abandonar os treinos de basquete, por falta de tempo. “E felizmente manteve-se um corpo docente homogéneo mínimo para manter a faculdade.”
Outra questão que deu origem a uma discussão muito forte entre os estudantes do MPLA foi a dos colegas que iam para Portugal, acompanhando os pais que retornavam. Tinham ou não direito aos documentos académicos que lhes certificavam os estudos? “Felizmente, venceu o bom senso: o pessoal tinha de sair com os papéis todos. “Passei muitas noites a tirar fotocópias de currículos das cadeiras, e a rubricar tudo, centenas e centenas de folhas para o pessoal poder ir com os seus certificados de habilitações.”
DO MINISTÉRIO DA DEFESA À CADEIA DE SÃO PAULO
Interrompemos por momentos o flashback para voltar ao dia da prisão de Jorge Fernandes e José Fuso. Deixámos-los num jipe a caminho do Ministério da Defesa. A palavra com Jorge: “Logo à chegada, um militar pergunta: ‘Quem é o Basófias?’ ‘Sou eu’, respondi. E logo ali começou a bater-me com bofetadas e pontapés. Era, soube depois, o Carlos Jorge, da DISA, um dos maiores torcionários e assassinos do 27 de Maio.”
Foram levados para as caves, salas fechadas sem luz natural, viradas para um corredor que ia dar ao pátio interno. Lá ficaram numa sala cheia de pessoas detidas, sentadas no chão. Ao lado de Jorge sentou-se um famoso guerrilheiro do MPLA, o comandante Sihanouk, detido como ele. “Fiquei sentado ao lado desse mais-velho fardado.”
A certa altura, Jorge Fernandes tomou uma decisão e disse ao Zé Fuso: “Nós temos de sair daqui!” Enloqueceu? Não. Às vezes a audácia, ligada a um golpe de sorte, faz milagres. É ele que relata: “Fui até à porta, que estava apenas fechada no trinco, abri-a, e quando vi passar no corredor um graduado com uma cara que parecia simpática, abri a porta e disse ‘camarada comandante, estamos aqui à espera do transporte, porque o nosso grupo da Universidade está todo na cadeia de São Paulo. Não nos podia enviar para lá?’ Ele ficou a olhar para mim e, não sei o que lhe aconteceu, mas o certo é que funcionou. O homem que tinha uma cara boa mandou chamar um jipe e uns guardas e disse: ‘Levem estes jovens para São Paulo’. Se não o tivesse feito isso, provavelmente as coisas teriam ocorrido de maneira diferente, porque do Ministério da Defesa só se partia para a morte.”
DISCUSSÕES INTERMINÁVEIS
De volta ao flashback. Na Universidade, a discussão ideológica dava origem a discussões intermináveis. Terminada a batalha de Luanda em setembro de 1975, quando o MPLA consegue expulsar de Luanda a UNITA e a FNLA, o debate travava-se no seio do próprio MPLA. “Começa-se a discutir que regime político a gente vai ter, qual o caminho a seguir, que democracia vamos ter, se é uma democracia popular, se é uma democracia nacional… Eu começo a entrar nesses assuntos com poucas leituras mas com muitas conversas e um ou dois anos de tertúlias. Eu e os meus amigos éramos os chamados ‘revisionistas’, isto é, os pró-soviéticos.”
As discussões recebiam muita influência das que ocorriam também no movimento estudantil em Portugal. A diferença é que eram dentro do MPLA, uma amálgama de tendências. “Todos queríamos controlar a orientação do Movimento. As discussões eram infindáveis. Eu fiquei “traumatizado” com essa discussão sobre a democracia nacional ou democracia popular – por que é popular, por que é nacional… Discutíamos até à exaustão. Não nos podemos esquecer que o conflito sino-soviético estava no auge e vivíamos na Guerra Fria.”
O grupo de Jorge Fernandes ainda não tinha referências no Nito Alves nem no José Van Dunem. “Eu conheço-os só de nome e das conclusões da conferência inter-regional de militantes em 74, onde são publicados os estatutos do movimento e onde é formado o Comité Central e o Bureau Político. Mas os nomes que eu conhecia do MPLA eram dois: o Agostinho Neto e o Lúcio Lara. E quem é o chefe? É o Agostinho Neto. As orientações que ele desse, eu, como militante, cumpria e lutava por fazer cumprir.”
FRACTURAS ENTRE MILITANTES DO MPLA
A “luta contra o fraccionismo” apanhou Jorge Fernandes de surpresa: “Eu sabia da relação que existia do José Van Dunem com a Sita Valles, sabia que a Sita Valles foi uma das pessoas que ajudou a organizar o DOM (Departamento de Organização das Massas) em Luanda, a pedido de Nito Alves. Comecei a aperceber-me da fratura, no MPLA, entre os militantes e colegas que nós éramos e que aguentámos a Universidade aberta, que abrimos as escolas para os refugiados quando eles chegaram a Luanda fugidos da guerra.”
Até que surgiram directrizes vindas de cima: “Primeiro, a que todos os estrangeiros tinham de sair dos grupos de acção, as estruturas de base do MPLA. Quem era o estrangeiro? Era o não-nascido em Angola. Vários amigos, de um momento para o outro deixam de ser militantes do MPLA. Nos grupos de acção a gente perguntava porquê e eu via camaradas que presumiam saber as razões. ‘Então, o Big lutou tanto, foi clandestino antes do 25 de Abril… O Virgílio Frutuoso, um cota que andou a fazer trabalho clandestino já há tantos anos no MPLA e agora de um momento para o outro já não são militantes do MPLA?”
as nas estruturas de base do Movimento não se discutia e notava-se já um clima de inimizade entre colegas. “Havia aquelas directrizes dos chefes e tínhamos de obedecer. Mas porquê? Mais tarde vim a perceber que a medida era para afastar a Sita Valles, mas não funcionou porque ela tinha nascido em Cabinda.”
“É O GRUPO DA SITA VALLES”
Passado pouco tempo, nova directriz: todos os militantes que participaram em organizações políticas estrangeiras que não o MPLA, tinham de sair. “Aí foi uma alta confusão, porque a medida atingia também os nossos chefes! Porque sempre tinha sabido que tanto Agostinho Neto quanto Lúcio Lara tinham sido do PCP. Depois vi que o objectivo era a Sita. Mas questionámos: e os que eram do MRPP? Mas a resposta era só uma: as directrizes são essas e é para cumprir.”
O ano de 1976 foi um agudizar constante do clima de tensão. “Eu sentia essa crispação. Primeiro, nos colegas da faculdade. Depois, na rádio e no Jornal de Angola, os únicos meios de comunicação além da TV, que emitia em horário muito limitado.” No Jornal de Angola, destacava-se a coluna de Costa Andrade, o Ndunduma, “Fio de Prumo”, que também assinava a crónica “Malhar no Ferro Quente”. Eram um incentivo ao ódio.
“Foi nessa altura que eu identifiquei. Os que estavam a ser acusados de serem fraccionistas eram os do grupo da Sita Valles, e é evidente que eu me senti tocado. Porque eu conhecia a Sita Valles, e mais, professava as linhas que ela defendia. Só depois é que se começou a falar do Nito Alves e do Zé Van Dunem.”
INTERROGADO PELOS CAMARADAS DA UNIVERSIDADE
Regressamos mais uma vez ao momento em que Jorge e José Fuso chegaram à cadeia de São Paulo, onde tinham sido internados muitos dos camaradas do MPLA com quem compartilhavam amizade e ideologia. Na cadeia, Jorge Fernandes entrou numa rotina de interrogatórios e torturas.
“Quem me interrogava não eram investigadores da segurança, gajos da DISA, que sabiam o que estavam a fazer. Os interrogatórios foram feitos pelos meus camaradas da Universidade, do MPLA. O João Beirão, o irmão, Henrique Beirão, o Henrique Morais, o José Guerreiro. Nos interrogatórios ficavam ali a humilhar-nos. Que informações podia eu dar-lhes, se eles tinham a mesma vida que nós? Se nos víamos todos os dias? Se pelo menos duas vezes por semana nos reuníamos à noite? E eu discutia com eles. A dada altura, entrava um dos chefes fardados, ficava ali a ouvir um bocadinho, depois saíam todos e entrava um chefe com outros militares básicos para a sessão de porrada. ‘Despe-te’. Batiam. ‘Veste-te’. Houve uma vez que chamaram o Zé Fuso, que me ia substituir na porrada. E disseram: ‘Então, andavas em reuniões com este?’ ‘Eu, reuniões?, respondeu ele, e levou logo porrada à minha frente. Depois levaram-me e ele ficou lá. Os que me bateram mais foram o chefe Xavier e o chefe Miranda.”
Eram interrogatórios sem objectivo – nem eles queriam saber alguma coisa, nem os presos tinham alguma informação para dar.
AGOSTINHO NETO, MAQUIAVÉLICO
De volta ao fio da meada, ao momento em que o nosso entrevistado reflecte sobre como Agostinho Neto manipulou Nito Alves a seu bel prazer. “Para mim, o Nito Alves foi sempre, até o fim, uma vítima do Neto. Assim como o aproveitou, logo a seguir ao 25 de abril, no falhado congresso de Lusaka, o Agostinho Neto fez o mesmo para destruir a organização do MPLA que ele não conhecia, nem controlava. E quem eram os mais dinâmicos? Eram, sem dúvida, os CAC’s, e depois a Organização Comunista de angola (OCA), e os mais-velhos, como ele, que não lhe obedeceram, os da Revolta Ativa. Já no congresso de Lusaka, Agostinho Neto “boicota” o congresso pondo o Nito Alves a afrontar a Revolta Ativa e pronto: o congresso ‘vai à vida’ e ele faz uma conferência inter-regional de militantes no interior do país onde forma um Comité Central e um Bureau Político, que são os que assumem o poder em Luanda.”
“Nito faz o trabalho que o Agostinho Neto, maquiavélico, decide que tem de ser feito quando chega a Luanda e vê ali um nível de organização, embrionária, é certo, que ele não esperava nem controlava. Ele e o Lúcio Lara ficam aterrados e pensam: ‘Temos de dar cabo disto antes que eles nos controlem!’”
“De forma que, quando queriam atacar alguém, decidiam no CC ou no BP, e quem comunicava à população era o Nito Alves. Que começava os discursos desta forma: ‘camaradas, estou aqui a apresentar as últimas instruções da reunião do Bureau Político do MPLA e as diretrizes do camarada presidente Agostinho Neto.’ E depois começava a discursar, e se era contra a RA era contra a RA, se era contra OCA, era contra a OCA, se era contra os CAC’s, era contra os CAC’s, contra o Mendes Carvalho…”
Chegou, porém, o momento em que não restava mais ninguém e o próprio Nito virou o alvo.
“Tinha de defender-se. E defendeu-se. Na reunião extraordinária do Comité Central em outubro de 1976, quem propõe que seja formada uma comissão de inquérito ao fenómeno do ‘fraccionismo’ é o Zé Van Dunem. Quem é nomeado para a comissão é o José Eduardo dos Santos que, segundo diz o Nito Alves, no seu opúsculo de defesa, as ‘Treze Teses’, nunca o ouviu. E escreve as teses à luz do que o Agostinho Neto lhe dissera: vamos para o socialismo e fundar um partido marxista-leninista.”
POVO PASSAVA FOME, DIRIGENTES FAZIAM FARRA
Nito Alves não só se defende, como também passa ao contra-ataque. “Havia que começar a melhorar as condições de vida do país. Escasseavam os alimentos, começava a haver muitas dificuldades. Faltava água, faltava muitas vezes a luz, alimentos, tudo. E o povo começa a organizar-se nos bairros, nos órgãos embrionários do poder popular, as comissões populares de bairro. Eram elas que mantinham a vida mais ou menos organizada.” Mas o estilo de vida dos dirigentes era faustoso. Importavam-se automóveis para distribuir por todos os dirigentes… e ouviam-se histórias das festas nas casas dos dirigentes. Era voz corrente o Iko Carreira [ministro da Defesa] ser o principal traficante de diamantes.
O próprio Jorge testemunha as famosas festas. “Tive uma amiga do liceu, a Milucha, que foi namorada e teve filhos do José Eduardo dos Santos, ainda no tempo do Neto, cujo irmão jogava basquete comigo. Houve vezes em finais de 1976, quando havia muita fome, e ele dizia-me: ‘Jorge, sábado aparece lá em casa’. Eu encontrava-o e íamos juntos à casa da irmã. Eram farras onde eu via aqueles comandantes que só conhecia de nome. Mas eu ia para lá era comer e beber, levava um saco de plástico e ainda trazia comida para a semana, porque eram festas abundantes, orgias, não faltava nada e onde estava sempre presente o mais-velho Hermínio Escórcio, chefe protocolar de Neto. E o povo dos musseques cada vez pior, e a OCA já estava muito ativa a passar toda essa informação.”
Os dirigentes que estavam ligados ao Nito Alves denunciavam, mas aquilo passava de boca em boca, não saía nos jornais. “Nito Alves também foi adquirindo popularidade como o ministro que superintendeu os órgãos do poder popular. Depois, era um genuíno, era negro. Isso também temos de dizer: havia muita gente que olhava e dizia: ‘É o nosso negro’. Nas Treze Teses, Nito reconhece: ‘Eu fui utilizado pelo Neto para combater a Revolta Ativa.’”
“QUISERAM QUE NOS DECLARÁSSEMOS PORTUGUESES”
Regressamos à cadeia de São Paulo, onde o nosso entrevistado foi posto diante de um dilema. “Depois de passada a primeira leva de tortura, chamaram-me para me darem a opção de assinar uma declaração a dizer que era português. Se eu assinasse, metiam-me num avião e expulsavam-me. Eu respondi que eles eram doidos. Levei umas lambadas. Nunca me ocorreu, desde o início, que eu era um luso-angolano, ou angolano-luso. Para mim, a minha nacionalidade era aquela.”
Mais tarde soube que os torcionários fizeram uma investida sobre os presos que tinham ascendência portuguesa para se declararem portugueses e irem para fora. “Mas nenhum de nós assinou, porque a convicção era muito forte.”
Mesmo depois dos interrogatórios e da tortura, quando outros já começavam a dizer que era o Agostinho Neto que estava atrás daquilo, Jorge questionava, acusando os que rodeavam o presidente. “Dizia que eles deviam ter o Neto prisioneiro lá e são eles que estão a fazer tudo isto. O chefe não ia mandar fazer isto. Eu tinha em mente o Lúcio Lara, o Iko Carreira, o Ludy Kissassunda, o Pepetela…”
Só soube que o Nito, o Zé Van Dunem e a Sita tinham sido fuzilados muito mais tarde. Os jornais não entravam na cadeia. Mas havia o mujimbo, a notícia que corria boca a boca. Na segunda metade de 77 já corria que eles tinham sido fuzilados.
“É PÁ, ISTO AQUI VAI DAR ALGUMA COISA!”
26 de Maio de 1977, a outra data marcante. Jorge Fernandes lembra-se melhor do dia 26 do que do próprio dia 27 de maio. No 26, estava programado à noite um jogo que marcaria o reinício do basquetebol em Angola no pavilhão do Rio Seco: era um jogo de veteranos e outro de malta nova.
“Eu não joguei, mas decidi ir assistir. Mas antes sair, estava com o José Fuso e ouvimos pela rádio a declaração do Lúcio Lara, com aquela voz grave, muito acutilante, muito ofensiva, como a dizer: ‘Pá, isto agora vai mesmo para a porrada!’ Foi essa a sensação que tive. Já tinha havido a reunião do Comité Central do dia 21 de maio que destituiu o Nito e o Van Dunem do Comité Central, e no próprio dia, à noite, na reunião geral de militantes no pavilhão da Cidadela, presidida pelo próprio Agostinho Neto, foram presos militantes que tinham pedido a palavra diante de toda a gente, umas dez mil pessoas.”
“O Lara dizia que apesar das decisões do Bureau Político, os camaradas não queriam cumprir, por isso iriam tomar medidas mais fortes, decisivas. A memória que tenho é que esse final da tarde foi extremamente penoso para mim. Fui ao basquete extremamente tenso, lembro-me de ter comentado ao José Fuso: ‘Isto vai dar bernarda!’ Aquela declaração do Lara parecia a última provocação para levar alguém a perder as estribeiras.”
Nessa noite do dia 26, os dois amigos foram para casa do José Fuso.
“TEMOS DE LIBERTAR OS NOSSOS LÍDERES, INJUSTAMENTE PRESOS!”
“No dia 27 acordámos cedo, por volta das sete horas e ao ligar o rádio ouvimos vozes do programa que tinha sido suspenso, o Kudibanguela, programa de cuja linha editorial eu não gostava, porque sempre afirmava que a culpa do colono, do branco, usava argumentos um bocado racistas. Aliado a outras coisas boas. Mas a grande surpresa foi voltar a ouvir o programa que tinha sido suspenso quando começou a orientação de ‘ataque aos fraccionistas’ e fora relacionado com o Nito Alves, o Zé Van Dunem e os ditos fraccionistas. E ouvimos: ‘Temos de libertar os nossos líderes, que injustamente foram presos!’ Imediatamente eu e o Zé Fuso telefonamos para pessoas amigas: ‘O que é que se passa?’ ‘Não sei, estou a ouvir isto, aquilo, e aqueloutro’… Pusemos o pé à estrada e eu não me recordo de ouvir tiroteio, o Zé Fuso diz que ouviu, quando passámos perto do bairro Sambizanga. Telefonámos para casa de um amigo, o Tony Luz, médico, e fomos ter a casa dele.” António Luz falou-lhes da necessidade de ir à Rádio Nacional, que estava a passar comunicados das diversas associações de apoio à manifestação no Palácio. “Era importante vocês irem lá, vocês também são da associação…” Quando lá chegámos estava um faplita no portão, jovens na rua, mas não vi pessoas armadas, nem qualquer veículo militar, não vi nem militares, a não ser o que estava à porta da Rádio. A concentração popular não era muito grande, não era a grande massa. Depois comecei a ouvir tiros de metralhadora pesada, eu e o Zé Fuso deitámo-nos para o chão e fomos a correr para minha casa que ficava ali muito perto. Entrámos e já não saímos mais.”
“TIVEMOS A PERCEÇÃO DE QUE ÍAMOS SER PRESOS”
“Não sei se houve manifestação no Palácio. Segundo dizem, houve uma manifestação que foi imediatamente reprimida a tiro, provavelmente nem se chegou a formar. Não ouvi tiros de armas ligeiras, o que significaria que havia gente atirando uns contra os outros. Na minha casa, acendemos a rádio e ficamos a ouvir. Ligámos também a televisão. Não me lembro de ver televisão durante o dia, mas recordo do Agostinho Neto a falar no final da tarde. Ficamos a tentar perceber o que se estava a passar. E no final do dia já tínhamos a percepção de que íamos ser presos. Se nos estavam a acusar de ser do grupo ‘nitista’, com toda a certeza que nos iria acontecer alguma coisa.”
“No sábado almoçámos e fomos no carro do Zé Fuso para casa dele. Ficámos lá no sábado e no domingo. Não tínhamos ninguém com quem conversar sobre o que acontecera. Não tínhamos coragem de ir à rua – e ainda bem, porque aquele foi um fim-de-semana muito sangrento.”
“No dia 30, uma segunda-feira, foi quando a malta toda começou a ser presa. Logo às primeiras horas da manhã começam a passar em casa de toda a malta da Universidade que foi presa. Na casa do José Reis, na casa do “Big”, na do Carlos Pacheco, do Quim Sequeira, do Vidigal… Também passaram em minha casa, só que não estava ninguém. Não foram à casa do Zé Fuso. E nós não sabíamos de todo que os nossos amigos mais chegados já estavam presos. Tendo consciência de que não podíamos ficar mais tempo escondidos em casa, era um absurdo, à hora do almoço fomos à cantina da Universidade.
O que aconteceu depois já foi relatado. Passemos agora para a terceira data marcante.
“VOCÊ É UM QUADRO VALIOSO PARA O PAÍS”
19 de agosto de 79. Jorge Fernandes e muitos outros presos tinham sido transferidos da cadeia de São Paulo para o campo de trabalhos forçados da Quibala no início de janeiro. O dia 19 de agosto foi o dia da libertação. O que aconteceu, se não tivesse ocorrido no quadro de uma enorme tragédia, pareceria um final de comédia.
“Apareceu no campo uma embaixada de dignatários do MPLA. O chefe da cadeia disse-nos que eram os juízes do tribunal popular revolucionário. Eram três: o Orlando Rodrigues, o Cafuxi e o Adolfo João Pedro. Foram-nos chamando um a um. “Quando chegou a minha vez, o discurso foi o seguinte: ‘Camarada, viemos cá para você retomar a sua vida normal, você é um quadro valioso para o país, esperemos que continue a trabalhar, como sempre…’ e dão-me um papel. Foram uns dez, quinze minutos. Não me perguntaram nada, e o papel era um mandato de soltura. Vim-me embora. Nunca fui acusado de nada, julgado de nada, não disseram porque me soltavam. Só aquele discurso paternalista.
“Houve um grupo que ainda ficou: o Manuel Vidigal, o José Reis, o José Agostinho, e dois economistas: o Zeca Batista e o Emílio Mateus, que estavam lá simplesmente porque eram da comissão de reestruturação da indústria açucareira. Esses só saíram depois da morte do Neto.”
POR MOTIVOS FAMILIARES, JORGE ACABARIA POR IR VIVER EM PORTUGAL NO FINAL DESSE ANO.
Hoje, depois de muitos anos de reflexão, tem algumas opiniões firmadas sobre o que aconteceu no 27 de Maio e sobre o processo que levou a esse evento.
“A mim, configura-se me que não há um golpe de Estado militar. Há movimentações militares no 27 de Maio, e quando falo de movimentações militares, estou a falar do ataque à cadeia de São Paulo e à tomada da Rádio Nacional. Não estou a falar de absolutamente mais nada. Como é possível ter havido combates e não ter havido mortos? Os mortos que existem são aqueles que apareceram na ambulância e depois os decorrentes da repressão que é feita sobre a população e sobre militares alegadamente afectos aos supostos golpistas.”
Insiste que “houve um esticar cada vez mais forte da corda, e a intervenção do Lúcio Lara serviu de casca de banana. E a nível dos militares também havia jovens com pelo na venta.”
Mas ainda hoje não acredita que Nito Alves, Zé Van Dunem, Sita Valles ou o Monstro Imortal tivessem uma agenda de dizer “vamos pegar na tropa e tomar o poder.” Prefere acreditar que aquele extremar foi de tal maneira grande, que levou os apoiantes do Nito Alves, principalmente dos militares, a fazer essas movimentações.
Sobre o papel das tropas cubanas, Jorge Fernandes reconhece que são eles que decidem o desfecho do 27 de Maio. “Foi a partir do momento em que os cubanos entram na rádio e a anunciam que a situação estava controlada, que se iniciou a repressão que já estava agendada. Os cubanos foram determinantes, e mais: fizeram parte da repressão. Por mais gratidão que eu tenha por Cuba pela conquista da independência, não me posso esquecer que o aparelho de segurança do MPLA tinha muito da mãozinha da segurança cubana. Não da segurança soviética. Para estes, isto era uma ‘briga de pretos’. Já os cubanos faziam tudo militantemente, e a segurança também. Em todos os locais de trabalho havia seguranças cubanos a ver como a gente trabalhava, o que estava a fazer. Mais dia menos dia, os cubanos vão também esclarecer esse assunto. Deve ter havido também muita luta dentro do aparelho cubano sobre o que fazer. Eles assistiram e participaram, nalgumas situações, naquela mortandade, naquela barbárie. Com toda a certeza que deve ter havido também muitos descontentes.”
Sobre o processo que levou ao 27 de Maio, considera que Agostinho Neto e Lúcio Lara, desde que chegaram a Luanda, começaram a urdir um plano para fazer o que sempre fizeram: acabar com grupos potencialmente perigosos para se manterem seguros no poder. “Quando o fizeram antes, o MPLA estava na guerrilha, eram meia dúzia de gatos pingados e não era um espaço de país; mas agora aniquilava os outros grupos como partido do poder, com a força do aparelho repressivo, de segurança, que entretanto fora construído. “Agostinho Neto e Lúcio Lara tinham uma agenda muito bem traçada, com etapas bem definidas: agora ataca-se a OCA, agora levanta-se a questão do “fraccionismo” e com essa questão a gente ataca tudo o resto. Porque se houvesse o congresso do MPLA sem o 27 de maio, não tenho dúvidas de que o MPLA tinha dado uma volta muito grande. O presidente, inquestionável, seria o Agostinho Neto, mas aquele comité Central e aquele Bureau Político com toda a certeza seria de militantes que sabiam ler e escrever, que sabiam discutir os assuntos. E sairiam os ‘históricos’ Lúcio Lara, Ludy Kissassunda, Iko Carreira, Onambwé, esse pessoal todo, que é um Comité Central feito em 74, depois do congresso de Lusaka. Disso eu não tenho quaisquer dúvidas.”