A JUSTIÇA DE FAZ DE CONTA: A LISTA DE RECUPERAÇÕES DE ACTIVOS E OS SEUS EQUÍVOCOS

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O Serviço Nacional de Recuperação de Activos (SENRA) tornou pública, há dias, a lista dos activos recuperados no âmbito da luta contra a corrupção – um passo necessário à transparência dos seus procedimentos legais e da negociação para entrega voluntária de bens por parte de vários cidadãos visados pela lei.

A lista de activos, que pode ser consultada, contempla apenas os activos já efectivamente recuperados e que estão na esfera do Estado, com uma excepção referente a três imóveis no Brasil, cuja transferência para o Estado angolano aguarda formalização. Não constam da lista activos apreendidos, arrestados ou, em linguagem simples, “congelados”, quer dizer, aguardando o término dos respectivos processos judiciais.

Segundo os cálculos que fizemos a partir dos dados apresentados (com mero papel e lápis), teremos um total aproximado de 8 mil milhões de dólares já realmente recuperados (incluindo algumas apreensões em euros devidamente convertidas), a que acresce cerca de um bilião de kwanzas.

Portanto, qualquer número acima deste total mais não representa do que uma expectativa, um desejo, um objectivo. O valor factual ronda os 8 mil milhões de dólares e o acréscimo em kwanzas. Os apregoados 19 mil milhões de dólares são uma esperança, não uma realidade.

A lista também evidencia um segundo aspecto muito relevante: as recuperações de activos tiveram lugar essencialmente em Angola ou foram realizadas por meios domésticos.

Do estrangeiro, apenas surgem duas moradias e um apartamento em Portugal (Algarve e Telheiras) e três imóveis no Brasil, com transacção ainda por formalizar.

Não há nada no Reino Unido, no Dubai, nos Estados Unidos, na Suíça, em Singapura, Hong Kong, etc. Isto significa que a cooperação judiciária internacional ainda não se traduziu em nenhuma recuperação efectiva de activos. Alguns activos podem estar “congelados”, mas não são devolvidos a Angola, seja porque os processos não estão terminados, seja por outros impedimentos.

O exemplo de Portugal é típico. Alega-se uma grande cooperação, foram publicados inúmeros títulos sobre buscas e apreensões (designadamente a Isabel dos Santos), todavia o resultado é mínimo: duas moradias e um apartamento, cujo valor total não chega a cinco milhões de dólares, e que provavelmente terão sido entregues de livre vontade.

Alguns dirão que esta ineficiência relativa à recuperação de activos no estrangeiro se deve à lentidão da justiça nos países concretos (será o exemplo de Portugal), mas também se aponta a falta de dinamismo da Procuradoria angolana (argumento utilizado por algumas autoridades portuguesas) ou desconfiança em relação aos intentos e boa-fé angolana (aparente fundamento de decisão na Suíça).

As razões poderão ser estas ou outras, mas o certo é que há uma visível dificuldade em recuperar activos no estrangeiro. Esse é um problema claro.

Em relação aos activos recuperados, vale a pena sublinhar alguns pontos muito interessantes.

Cerca de 40% dos activos recuperados (3,35 mil milhões de dólares) são provenientes do Fundo Soberano, referindo-se à gestão de José Filomeno dos Santos e Jean-Claude Bastos de Morais. Na realidade, estas verbas, pelo menos na sua maioria, não teriam saído do Fundo Soberano, antes tendo sido entregues para gestão a Jean-Claude, que se recusava a entregá-las. Não se trata propriamente de uma recuperação de activos, mas de controlo de gestão.

Dos restantes activos, sobressaem alguns conjuntos. Os 81 hotéis IKA e IU pertencentes a Carlos São Vicente representam uma larga fatia dos activos recuperados. Outro grupo interessante é composto por fábricas de têxteis avaliadas em mais de 500 milhões de dólares, aparentemente pertencentes a Joaquim Duarte da Costa David, Tambwe Mukaz e José Manuel Quintamba de Matos Cardoso. Outro item é uma fábrica de cerveja avaliada em 116 milhões de dólares, que pertenceria a Isabel dos Santos.

Mais de três mil imóveis no Kilamba, avaliados em 170 milhões de dólares, são outros activos apreendidos. Estes seriam propriedade do China Investment Fund (CIF), cujos beneficiários últimos serão alguns chineses ligados e Sam Pa; em relação a Angola, parece claro que Manuel Vicente era o coordenador de várias participações, embora não exista nenhum processo criminal referente a ele. Ligado ao CIF, temos também a entrega das Torres CIF 1 e 2, no valor aproximado de 200 milhões de dólares, e a gráfica Damer, avaliada em 120 milhões de dólares. Ainda de referir o edifício do Instituto Sapiens de Luanda, provavelmente de Pitra Neto (no valor de 22 milhões de dólares) e o Edifício Luanda Medical Center (44 milhões). Finalmente, merecem referência a TV Zimbo, avaliada em 99 milhões de dólares, e um depósito de 313 milhões de dólares.

Embora esta lista seja impressionante, acaba por representar uma “gota de água no oceano”, mesmo atendendo apenas a Angola.

Algumas considerações podem ser feitas em relação ao destino dos activos. Por exemplo, o valor em dinheiro de 313 milhões de dólares poderia ser utilizado directamente para iniciar um programa activo de combate ao desemprego. Aqui está uma oportunidade que não pode ser perdida.

Em relação aos outros activos, temos a opinião, que aqui repetimos, de que deveria ser criada uma sociedade de gestão que concentrasse esses activos. A cargo dessa sociedade ficaria a gestão destas empresas, que seria acompanhada de perto por um organismo independente. O esquema que propusemos em 2020 previa a criação de uma comissão independente composta por membros das auditoras reconhecidas – KPMG, Deloitte, etc. – e da sociedade civil, com o objectivo de proceder à proposta de nomeação dos gestores da sociedade de gestão dos activos recuperados, bem como de controlar a sua gestão. Na altura, escrevemos que “seria uma comissão transparente que prestaria contas ao público e teria poderes mistos de Assembleia-Geral e Conselho Fiscal. É fundamental a existência de um organismo independente para acompanhar e fiscalizar a gestão das empresas que estão a entrar no sector público” Voltamos a apresentar essa proposta.

Finalmente, um último tema é o da avaliação dos activos. Se é fácil avaliar imóveis, já mais difícil é calcular o valor de empresas ou saber o que se está a avaliar.

Por exemplo, os 81 hotéis de Carlos São Vicente foram avaliados tendo apenas em conta o valor dos edifícios ou contabilizou-se a operação hoteleira? A gráfica Damer vale 120 milhões pelos edifícios e máquinas ou pelo seu valor como empresa? E os passivos que estão contabilizados, foram incorporados na avaliação? As fábricas têxteis não tinham passivos? A TV Zimbo tem dívidas que são conhecidas. Estão incluídas nos 99 milhões de dólares de avaliação? E os custos de manutenção de três mil edifícios no Kilamba, quanto retirarão ao valor de 170 milhões de dólares?

São questões para as quais não temos respostas. Acreditamos, como se referiu acima, que só uma gestão centralizada e transparente destes activos poderá dar respostas e transformá-los em reais benefícios para a população, que é o que se pretende com a luta contra a corrupção.

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