“NENHUMA CONTA DA LUTA CONTRA A CORRUPÇÃO É ENTREGUE AO FISCO SEM A ASSINATURA DA OCPCA”

0

Na sua primeira entrevista na qualidade de Bastonário da Ordem dos Contabilistas e Peritos Contabilistas de Angola (OCPCA) Manuel Ribeiro Sebastião explica tudo ou quase tudo sobre a instituição em epigrafe , que promete torná-la membro da Federação Internacional da Contabilidade, organização global que representa os profissionais de contabilidade no mundo. Ao mesmo tempo, garante que nenhuma conta da Luta contra a Corrupção deve ser apresentada ao fisco se não for assinada por membros da OCPCA

JÁ LÁ VAI O TEMPO EM QUE  O  CIDADÃO COMUM DESCONHECIA A IMPORTÂNCIA DA PROFISSÃO DE CONTABILISTA CERTIFICADO PARA A ECONOMIA E PARA O RIGOR DAS CONTAS PÚBLICAS OU NEM POR ISSO?

Achamos que sim. De notar que entre 1980 e 2000 a contabilidade em Angola foi relegada para um segundo plano devido ao sistema de Economia Socialista Planificada que existia. Esse sistema, apesar de até bastante lógico e simples em muitos dos seus processos, não olhava para o imperativo fiscal e declarativo na óptica contabilística tradicional. Foi um espaço de tempo demasiado grande e o cidadão comum  e,  consequentemente as empresas comuns,  perderam a noção do que era a contabilidade e o contabilista. O sistema educacional também não ajudou neste aspecto.

ACTUALMENTE, OS ANGOLANOS ESTÃO MAIS DESPERTOS PARA A IMPORTÂNCIA DA CIDADANIA FISCAL?

Claro que sim. Nos últimos anos, tem havido um aumento na consciencialização da importância da cidadania fiscal no país e não só, fundamentalmente pelo nível de transparência e ao acesso à informação sobre os gastos públicos a nível do OGE. O Ministério das Finanças (aqui representado pela – AGT- Administração Geral Tributária) tem adoptado medidas para aumentar a consciencialização sobre a cidadania fiscal, promovendo campanhas educativas e programas de divulgação para informar os cidadãos sobre seus direitos e deveres fiscais.

(…)

A Ordem dos Contabilistas e Peritos Contabilistas de Angola (OCPCA) não fica atrás através das formações contínuas e estágios ministrados na nossa academia. Verifico que a sociedade civil tem também se dedicado a educar e a consciencializar os cidadãos sobre a importância da cidadania fiscal e da responsabilidade individual em relação aos impostos, como temos estado a ver nas mais diversas palestras e seminários na nossa praça. No entanto, ainda há muito a ser feito para aumentar a consciencialização e a participação dos cidadãos no processo fiscal.

COMO ASSIM?

Muitos cidadãos ainda não compreendem completamente o impacto de suas escolhas fiscais, ou não têm confiança nas autoridades fiscais.

Portanto…

É  importante que o Ministério das Finanças (fundamentalmente), a OCPCA e outras organizações continuem a promover a educação fiscal e a transparência para garantir que os cidadãos entendam a importância da cidadania fiscal e se envolvam activamente no processo fiscal.

A PROPÓSITO, QUAL  É  A VISÃO DA ORDEM SOBRE O OGE 2023? É UM ORÇAMENTO AMBICIOSO DO PONTO DE VISTA DA FISCALIDADE?

O OGE de 2023 em matéria de fiscalidade, quando comparado ao  OGE de 2022, é  ambicioso. E os números  falam por si, pois traz as seguintes alterações: no IVA, define claramente as balizas para que conste do regime simplificado do IVA, nomeadamente, o volume de negócios ou o total das importações igual ou superior a 10 milhões de Kwanzas e inferior a 350 milhões  de Kwanzas; os sujeitos passivos com o volume de negócios inferior ou igual a 10 milhões de  Kwanzas estão excluídos da tributação em sede de IVA; deixa de existir IVA retido à taxa de 2,5% nos pagamentos por TPA; os sujeitos passivos da indústria transformadora devem fazer parte do regime geral, desde que tenham um volume de negócios superior a 10 milhões Kzs, em 2022,  não se fazia esta delimitação. Já no IRT, os contribuintes do grupo C com volume de negócios igual ou inferior a 10 milhões de Kzs pagam 6,5% sobre o volume de vendas não sujeitas à retenção na fonte a título de imposto industrial; os contribuintes do Grupo C de IRT com contabilidade organizada apuram o imposto industrial com as devidas adaptações de acordo com as regras de apuramento do regime geral do imposto industrial.

É TAMBÉM DAQUELES QUE CONCORDAM QUE HÁ  INSTABILIDADE E INSEGURANÇA NA LEGISLAÇÃO FISCAL E CONTABILÍSTICA?

Não se pode considerar que existe instabilidade e insegurança na legislação. Podemos apenas referir que, devido à falta de literacia fiscal e contabilística, talvez a legislação não precisasse de tantas variáveis.

O IRT E O IVA PODERIAM SER MAIS SIMPLES?

Acho que sim. Mas de qualquer das formas isto não significa instabilidade e insegurança, uma vez que esta legislação está em linha com o que internacionalmente se pratica.

MAS CONCORDA QUE EXISTEM CARÊNCIAS NAS NORMAS CONTABILÍSTICAS?

Existem na combinação contabilidade-fiscalidade no que diz respeito à questão da reavaliação de activos, e mesmo de passivos…

E…

…e  esta carência tem a ver com o fenómeno que contabilisticamente se chama “registo pelo valor histórico definido no PGC” versus “desvalorização-inflacção angolana”. Esta regra torna os balanços das empresas, que deveriam representar a valorimetria das empresas de forma automática, elementos de análise bizarra, porque os valores dos activos podem estar registados num valor inferior ao seu valor real, que vai de 2 a mais de 30 vezes. Nessa altura, já seria desejável proceder-se à contabilização dos activos e passivos de acordo com o justo valor.

A MÁQUINA FISCAL MODERNIZOU-SE MUITO NOS ÚLTIMOS ANOS. HOJE,  É MUITO DIFÍCIL FUGIR AOS IMPOSTOS  OU A  FRAUDE E A EVASÃO FISCAL CONTINUAM A SER DORES DE CABEÇA? TEM NÚMEROS?

Não temos números, mas temos a percepção de que ainda existem muitas empresas que não prestam contas. Efectivamente, tecnicamente, sempre foi difícil fugir aos impostos. A contabilidade é das ciências que não têm como registar um débito sem um crédito e uma justificação. A informática apenas deu rapidez nas ferramentas de trabalho, tanto a nível das empresas como dos órgãos reguladores.

E A RESPOSTA À FUGA DE IMPOSTOS?

A resposta à fuga de impostos deve ser colocada ao órgão regulador e ao MJDH (Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos), que são quem tem as estatísticas da quantidade de empresas existentes e quantidade de empresas que prestam contas regularmente. Achamos também que existe uma grande quantidade de empresas que exercem actividade em Angola e não são residentes fiscais angolanos, e por isso ficamos com uma percepção errada.

 (…)

Igualmente,  devem ser os órgãos reguladores a responderem a esta pergunta.

EXISTE UMA ESTREITA COLABORAÇÃO COM O PODER POLÍTICO, EMPRESARIAL E COM A SOCIEDADE CIVIL?

Colaboração existe. O que não existe é capacidade de produção de empregos que superem a taxa de crescimento da população economicamente activa. A economia simplesmente não tem como acompanhar a demanda em termos laborais. Angola tem um crescimento de cerca de 1 milhão de pessoas por ano.

E O QUE ISSO SIGNIFICA?

Significa pelo menos a criação de 300 mil novos empregos por ano. Não existe tal capacidade de produção de empregos. O país precisa urgentemente de um sistema que “consciencialize a necessidade de controlo do crescimento populacional” + “necessidade da criação de auto-sustentabilidade pelo menos alimentar” + “a definição de uma política de atracção populacional ao campo”.

QUAL TEM SIDO A COLABORAÇÃO E/OU A PARTICIPAÇÃO DA ORDEM NA LUTA CONTRA A CORRUPÇÃO, POR EXEMPLO NO MAPEAMENTO DAS CONTAS? OU NÃO TEM SIDO TIDO NEM ACHADO?

A Lei 3/01 estabelece que nenhuma conta deve ser apresentada ao fisco se não for assinada por membros da OCPCA.

INCLUSIVE  AS CONTAS LIGADAS AO COMBATE CONTRA A CORRUPÇÃO?

Exactamente. Existem arestas por limar, mas basicamente esse princípio, associado aos normativos como o código de disciplina e código de conduta da OCPCA, é uma amostra da intenção que existe por parte do Governo em potenciar a Ordem nesse aspecto…

E…

…e por outro lado, em termos de auditoria, nenhum relatório pode ser aceite sem igualmente ser assinado por pessoas ou empresas que sejam membros da OCPCA. Sempre que a OCPCA é chamada, tem respondido ao solicitado. A OCPCA, mais concretamente o seu Conselho Técnico de Auditoria, está,  neste momento,  em fase final de discussão para a aprovação da alteração da norma técnica nº1 e nº2 da OCPCA, com vista a fazer a adopção plena das ISAS (International standards on audit), na emissão de opiniões independentes de auditoria. Com vista à promoção de mais rigor e confiança nas demonstrações financeiras e maior transparência na governação corporativa e não só.

QUANTAS EMPRESAS DE CONTABILIDADE E DE AUDITORIAS NACIONAIS ESTÃO INSCRITAS NA ORDEM? E QUANTOS CONTABILISTAS?

Hoje temos 151 empresas, 4 mil e 778 contabilistas e 414 peritos contabilistas. Temos ainda 8 mil e 375 estagiários e 3 mil 209 candidatos em vários estágios de avaliação.

E NÃO O PREOCUPA, PARTICULARMENTE, O FACTO DE NÃO HAVER  EMPRESAS NACIONAIS A FAZER CONTABILIDADES OU AUDITORIAS ÀS CONTAS DE EMPRESAS ESTRANGEIRAS DE GRANDE GABARITO, NEM A EMPRESAS COMO A SONANGOL?

Legalmente falando, todas as empresas que fazem auditorias são residentes fiscais inscritas na Ordem.  Por isso, a resposta é: compete ao cliente escolher a sua empresa de contabilidade e/ou auditoria. Assim, existem: 6 empresas de auditoria; 58 empresas de contabilidade e auditoria; 87 empresas de contabilidade; 131 empresas candidatas em vários estágios de avaliação.

E QUAIS SÃO OS “NÍVEIS” DAS EMPRESAS ANGOLANAS?

 Internacionalmente, existem 3 ou 4 níveis: as chamadas BIG 4; as chamadas BIG 10; as outras. Angola tem,  neste momento,  empresas nos três níveis.

PORQUE HÁ MUITOS TÉCNICOS COM DIFICULDADES FINANCEIRAS?

Não existe um estudo sobre este fenómeno, mas basicamente isto tem a ver com o facto de, pelo que sabemos, não existirem empresas legais no país em quantidade suficiente para absorver a totalidade dos membros e estagiários da OCPCA.

O QUE QUER DIZER COM “NÃO EXISTEM EMPRESAS LEGAIS”?

Quando dizemos empresas legais, estamos a falar de empresas que prestam contas normal e formalmente. Temos a percepção de que existem muitas empresas que não prestam contas, assim como de que essas empresas geralmente recorrem a técnicos estrangeiros que nem membros da Ordem dos Contabilistas e Peritos Contabilistas de Angola são… Mas, repetimos, não temos elementos suficientes, nem um estudo que comprove esta análise. Pelo que continuamos a criar condições para ter essa informação actualizada e correctamente suportada.

A INFORMATIZAÇÃO DOS PROCESSOS APRESENTA-SE COMO UM DOS PRINCIPAIS DESAFIOS PARA A CLASSE CONTABILÍSTICA?

Sim e não… O processo de automação dos registos contabilísticos é um facto irreversível. Os profissionais têm de se consciencializar disso e aprender a dominar muito bem as ferramentas informáticas para as saber parametrizar de forma adequada; saber contabilidade de forma profunda para que saibam o que parametrizar nos sistemas para se obterem os resultados pretendidos…

… e, acima de tudo…

… têm de dominar as matérias fiscais  de forma profunda.

O FUTURO PROFISSIONAL DA CONTABILIDADE VAI SER UM PARAMETRIZADOR DE SOFTWARE, É ISSO?

Exactamente.  E  fiscalista acima de tudo. Em auditoria idem, embora neste caso a fiscalidade seja numa óptica inspectiva e extensiva aos instrumentos de gestão e compliance.

OS CONTABILISTAS ANGOLANOS ESTÃO PREPARADOS PARA ASSUMIR ESTA ERA DIGITAL OU TEME QUE SEJAM ULTRAPASSADOS?

As empresas têm também de começar a olhar para o contabilista e auditor como uma ferramenta e ajuda de gestão, e daí a necessidade de parametrizar muito bem os sistemas informáticos. Os sistemas de inteligência artificial, assim como qualquer processo de automação, exige a montante  e ajusante todo um processo de País, ele próprio  automatizado.

Não é credível que em Angola esse processo esteja em funcionamento nos próximos 10 anos. De qualquer forma, o contabilista e auditor tem  de se adaptar  e para isso tem de dominar muito bem a contabilidade

E O ESTADO NÃO É PARA AQUI CHAMADO?

Urge,  no entanto, a necessidade de o Estado trabalhar com a OCPCA a nível dos  conteúdos educacionais sobre esta matéria. A inserção na grelha formativa da OCPCA de conteúdos como Big Data, Data Analytics, Machine Learning, Deep Learning, Robótica, domínio da utilização de ERP, CRM, deve ser feita com a maior brevidade possível.

OU SEJA, O ENSINO ANGOLANO PRECISA DE SER MUDADO?

O sistema de ensino angolano precisa de ser mudado no sentido de produzir trabalhadores, em vez de canudos. Dito de outra forma: o perfil de saída dos estudantes deve estar conforme às exigências do mercado de trabalho.

AS EMPRESAS ESTRANGEIRAS DEVEM ESTAR INSCRITAS NA ORDEM ANTES DE EXERCEREM AS SUAS ACTIVIDADES?

Sim… Se quiserem assinar relatórios têm de estar registadas na Ordem; se não houver relatórios assinados, é um serviço como outro qualquer. Acontece que, para efeitos legais – Estado, bancos, etc -, só se pode aceitar relatórios assinados, e por isso a resposta é sim… têm de estar registadas na OCPCA.

E QUANTO AOS CONTABILISTAS ESTRANGEIROS?

Excepto os contabilistas que foram aceites e registados no  período transitório (época em que os membros eram obrigados  a oficializar as suas   inscrições, devendo para o efeito fazer um curso chamado Actualização) . Porém, os contabilistas estrangeiros só podem ser membros se houver  acordos de reciprocidade  entre a OCPCA e a Ordem do país onde esse contabilista é membro.

SEI QUE PARA HAVER RECIPROCIDADE, É CONDIÇÃO GERALMENTE ACEITE QUE AS ORDENS TENHAM DE SER MEMBRO DA IFAC, E VOCÊS NÃO SÃO MEMBROS DA IFAC? COMO FICAMOS?

Por essa razão, não podem os contabilistas estrangeiros (excepto os que foram registados no período transitório) assinar contas em Angola, nem tão pouco relatórios de auditoria.

Porém, é necessário mencionar que a Ordem tem,  de facto,  trabalhado no sentido de fazer com que Angola, no mais curto espaço de tempo, se torne membro da IFAC – Federação Internacional da Contabilidade, organização global que representa os profissionais de contabilidade no mundo.

Perfil

Manuel Ribeiro Sebastião Um senhor de canudos

Nascido há 50 anos,  o nosso entrevistado carrega um personagem que ele próprio qualifica como simplicidade. Entretanto, à primeira vista, mostra-se desprovido de todas as qualidades que o caracterizam, mas que seriam descobertas depois de uma hora de conversa.

O nosso interlocutor tem cinco canudos. Manuel Ribeiro Sebastião fez duas licenciaturas (a primeira, em Contabilidade  Administrativa na Universidade Agostinho Neto, a segunda  em Direito Económico na Universidade Óscar Ribas). O Mestrado em Finanças Empresariais na Universidade Christian Florida , o  Doutoramento em Administração de Finanças na mesma universidade.

Docente em Pós-graduação na Faculdade de Ciências da Universidade Agostinho Neto  (nas  áreas de Contabilidade e Fiscalidade, Auditoria e Avaliação de Empresas, Economia e Finanças Empresariais) e  na Universidade  Metodista de Angola  (nas áreas de  Fiscalidade, Planeamento e Gestão Fiscal, Contabilidade Financeira Avançada, Finanças Empresariais e Projectos Empresariais), fez ainda um  outro Mestrado (MBA) na Escola Internacional de Negócios do Brasil

Autor dos livros “Consultoria Fiscal – Foco no Imposto sobre o Rendimento do Trabalho” , “Plano Geral de Contabilidade em Angola I e II” e “A Gestão das Finanças nas Igrejas”, antes de ser eleito Bastonário da Ordem dos Contabilistas em 2021 , desempenhou  funções de relevo na  OCPCA , nomeadamente responsável do gabinete de Formação,   vogal do Conselho Disciplinar, coordenador do Grupo Técnico de Apoio a Implementação do IVA , formador Titular de Direito Fiscal e Fiscalidade, entre outras .

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Você não pode copiar o conteúdo desta página