O NOSSO GATUNO – RAFAEL MARQUES DE MORAIS

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Uma das mais memoráveis peças de comédia em Angola é o retrato crítico dos Tuneza sobre a gatunice, a banalização do sistema judicial em Angola e o recurso à justiça por mãos próprias.

Fonte: Maka Angola

No “gatuno é meu”, Ti Martins conta como flagrou um gatuno no seu quintal, o tratou à porrada e o levou para a esquadra, a conselho da vizinhança. Quando o suspeito é entregue ao procurador, o afamado Ti Martins opõe-se com veemência porque, dada a absoluta falta de confiança no sistema, “o procurador procura o gatuno dele. O governo lhe paga, por isso é que ele é procurador. (…) Eu também sou procurador no meu bairro!”

O referido cidadão continua: “Chego lá no tribunal porque o juiz vai decidir, mas vai decidir o quê? (…) ele roubou na minha casa e não na casa do juiz. O gatuno é meu. Eu quero o meu gatuno!”

Por conta da má governação, a palavra “gatuno” poderá ser a palavra-passe para definir o legado dos dez anos de governação pós-Dos Santos. João Lourenço começou com uma extraordinária possibilidade de fazer história em África. Poderia ter sido um líder reformista, dedicado à boa governação e com sentimento de amor ao seu povo. Porém, o presidente tem sucumbido ao peso da falta de visão sobre o país, à incompetência e à recaptura do Estado pela nova e obtusa oligarquia que se vai formando à sua volta.

Desde a independência, o povo angolano tem sido roubado de forma desalmada pelos seus dirigentes, sobretudo em termos de vidas humanas e do futuro de gerações. Os custos da pilhagem e da incompetência, que afectam sobremaneira os sectores da saúde e da educação, têm sido incalculáveis.

A quem recorre o povo para exigir justiça e punição contra essa gatunice que os mata?

Estamos agora perante a detenção de um jovem e uma caça a outros dois, por terem chamado o presidente de “gatuno”. Num vídeo amador, divulgado nas redes sociais Tik-Tok e WhatsApp, os três jovens procuravam dar as boas-vindas ao presidente da República na sua visita às obras do Aeroporto Internacional “Agostinho Neto”, onde trabalham.

Na verdade, o referido aeroporto é um dos maiores elefantes brancos de África, e já consumiu milhares de milhões de dólares, que muito e bem poderiam ter servido para melhorar as condições de vida de milhares de angolanos. O presidente, enquanto chefe do governo, nunca apresentou um relatório preliminar sobre os gastos do aeroporto, nem sequer ordenou uma investigação sobre o destino dos fundos. Na verdade, fez mais adendas financeiras ao projecto. Assim, assumiu todo o passivo e total responsabilidade pelos custos injustificáveis da construção do aeroporto.

O mandato do presidente Lourenço tem sido marcado, sobretudo, pelo roubo das esperanças dos angolanos na valorização e dignificação do capital humano, no uso do conhecimento e do bom senso para a boa governação.

No início do seu mandato, Lourenço contou com o extraordinário apoio popular para implementar as reformas que se impunham, para promover a justiça e para instituir um governo funcional. É evidente que nos incluímos entre os que tiveram essa esperança.

Entretanto, o tempo passou, e o que vemos é o oposto: má governação, aplicação ineficiente da justiça e mau pessoal.

A recente recondução de José de Lima Massano para um terceiro mandato como governador do Banco Nacional de Angola é apenas mais uma prova da falência técnica irreversível deste governo e da sua aposta no passado.

A boa governação é essencial para criar empregos, sem os quais o exército de desempregados do país não pode sustentar as suas famílias com o suor do seu trabalho e, desse modo, reduzir a fome endémica e a extrema pobreza do país. Quem paga pelo roubo das esperanças? Quem paga pelo desgoverno?

O presidente é um símbolo nacional e está protegido por imunidades. Tem direito à dignidade, ao bom nome e a todos os outros direitos fundamentais. Mas o povo angolano também tem direito à dignidade e tem o dever de manifestar o seu descontentamento contra a má governação, mas sobretudo contra o roubo dos seus mais elementares direitos pela classe dirigente.

Esta detenção por causa de um vídeo publicado no Tik-Tok demonstra que os homens do presidente ou não se lembram de casos similares do passado ou querem enterrar politicamente João Lourenço. É impossível não ficarmos confusos: afinal, parece que ainda estamos no regime de José Eduardo dos Santos, já que agora se mantêm as mesmas práticas imbecis de abuso de poder. No actual regime, as autoridades demonstram a habitual rapidez e eficácia – infelizmente, não para deter os criminosos que assaltam despudoradamente os cofres do Estado, mas sim para atacar simples cidadãos que exercem o seu direito à liberdade de expressão. Em vez da prometida luta contra a corrupção, o regime de Lourenço parece querer mostrar o seu empenho em lutar contra a liberdade de expressão.

No topo do seu poder, Dos Santos, mesmo depois de ter cafricado toda a oposição, passou grande parte do seu tempo a desgastar-se com jornalistas e activistas, e as prisões e condenações de nada lhe serviram. Lourenço, por sua vez, está numa posição mais vulnerável. A cultura do medo foi ultrapassada, em parte, devido às suas corajosas intervenções públicas contra os malefícios da governação do seu antecessor. No entanto, hoje o presidente vai repetindo os erros, enquanto aniquila, com inaudita arrogância e teimosia, as esperanças da maioria dos angolanos por um governo melhor e, consequentemente, por um país melhor.

Em termos de comunicação, a prisão do jovem do Tik-Tok, cujo nome não foi ainda tornado público, é aquilo de que a sociedade precisa para organizar mais um movimento de solidariedade contra o governo e o desgoverno do país. Trata-se de uma batalha em torno da liberdade de expressão que o regime do presidente Lourenço certamente perderá.

Convém que o presidente perceba que só há uma via para conquistar o respeito e o carinho da população: governando bem. As tentativas de repressão e de imposição de medo para subjugar a opinião pública ao seu poder são um esforço condenado ao insucesso.

Apesar disso, os jovens devem usar uma linguagem urbana para chamarem os “bois pelos nomes” sem ofensas. O civismo e o respeito pela pessoa humana são as maiores armas da liberdade expressão contra os que abusam do poder. O uso mais eficaz da liberdade de expressão é aquele que coloca o outro ao nosso nível, dizendo a verdade. Basta a verdade, sem ofensa.

Liberdade, já, para o jovem do Tik-Tok!

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