ELEIÇÕES: JUSTIÇA IGNORA PROGRAMA DOS PARTIDOS

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Numa democracia, tão ou mais importante do que o voto é a existência de juízes livres, independentes e imparciais. Na realidade, o voto verdadeiro é um processo democrático cuja protecção e garantia cabe, em última análise, aos tribunais. Consequentemente, os tribunais são a ultima ratio da democracia, tal como o eram os canhões dos reis absolutos. A substituição dos canhões pelos tribunais é um dos mais proeminentes avanços da humanidade.

Em relação a Angola, é um facto que os últimos anos lançaram um novo foco sobre a justiça, tornando-a alvo de todas as atenções a partir do momento em que se tornou o instrumento privilegiado no combate à corrupção. No entanto, como demonstraram as recentes deambulações especulativas sobre troca de cadáveres por amnistias, apesar de todos os progressos, ainda se está muito longe de uma justiça auto-suficiente no país.

A importância da justiça ficou bem patente na recente atitude do Governo em relação às referidas vicissitudes do cadáver em causa. Quando a questão surgiu, o Governo despachou para Barcelona dois generais: um general da Justiça, nada que menos que Pitta Groz, o procurador da República, e o general Furtado, um general da Segurança. Percebe-se bem que a justiça se tornou o novo campo de batalha dos generais.

Na verdade, a justiça em Angola tem um papel mais amplo, podendo-se tornar na marca da evolução democrática que todos desejam. Não existe democracia e estado de Direito se não existir uma justiça eficaz e adequada. Note-se, aliás, sobretudo aqueles que ainda vivem das comparações com Portugal, que este país é considerado uma democracia imperfeita e não plena, o que se deve em grande parte às deficiências do sistema de justiça.

Assim, neste texto e com vista às futuras eleições, vamos analisar as propostas dos dois principais partidos (MPLA e UNITA) na área da justiça e apresentar as próprias ideias do Maka Angola. Este exercício tem como objectivo estimular os cidadãos e as instituições da sociedade civil a apresentarem as suas próprias ideias e agendas sobre a boa governação do país – trata-se de um dever de todos, sobretudo quando os políticos pecam por omissão, por falta de ideias ou por estarem engajados em projectos contrários ao bem comum.

Inexplicavelmente, somos confrontados com um quase deserto neste tema. O programa do MPLA, na versão a que o Maka Angola teve acesso (Programa de Governo MPLA, 2022-2027, 58 páginas), apenas refere um eixo estratégico denominado “Consolidar a paz e o estado democrático de direito, prosseguir a reforma do estado, da justiça, da administração pública, da comunicação social e da liberdade de expressão e da sociedade civil”. A palavra “justiça” apenas surge no programa um outra vez, e não há qualquer elaboração sobre aquilo em que possa consistir a reforma da justiça.

Portanto, em rigor, podemos afirmar que não existe qualquer referência material à justiça e à reforma da justiça no programa do MPLA. Isto não deixa de ser surpreendente, tendo em conta que este governo, ao eleger como seu estandarte o combate à corrupção, colocou a justiça no centro da vida política do país. Verificou-se, de resto, que o sistema judicial não estava preparado para, de modo célere e justo, resolver a titânica tarefa que lhe foi entregue, o que levou a acusações de selectividade, favoritismo e afins.

Temos entendido que estas acusações nem sempre correspondem à realidade, porque, regra geral, o sistema judicial em Angola sempre foi disfuncional e subordinado ao poder político. Nos últimos anos, a sua disfunção tem derivado mais da natureza do processo judicial e da falta de experiência na criminalidade económico-financeira por parte da magistratura. Trata-se de um processo casuístico, assistemático, individual e que obedece a uma tramitação formal. Tudo isto traça no horizonte uma imagem de compadrio e lentidão.

É bastante nítido que muito falta para os tribunais angolanos funcionarem adequadamente. De modo que só a palavra “espanto” pode descrever a constatação de que não existe qualquer detalhe sobre a reforma da justiça pretendida pelo MPLA – ou então não lemos o documento certo.

Quanto à UNITA, escondida na página 31 lá aparece a reforma da justiça. Trata-se de 11 medidas poucos estruturantes ou reformistas, desdobrando-se entre invocações tecnológicas e platitudes como “plano nacional de infra-estruturação da justiça”, “justiça mais simples, acessível e célere”, “aperfeiçoar modelo de atendimento”.

A realidade é inequívoca: embora dedique algum espaço à justiça, o programa da UNITA não apresenta quaisquer reformas, rupturas ou inovações nesta área.

O facto de os dois partidos angolanos dedicarem tão pouco ou nada ao tema da justiça é motivo de perplexidade e inquietação. Nos últimos cinco anos, a justiça foi um dos pólos de contenção em Angola: ainda agora, em Espanha, a triste novela surreal do corpo do antigo presidente da República, o malogrado José Eduardo dos Santos, acabou entregue à justiça.

O que se prevê e se espera é que cada vez mais casos de relevo surjam na justiça angolana. Desde logo, aguarda-se pelo que sucederá a Manuel Vicente, quando, em Setembro próximo, chegar ao fim a sua suposta imunidade constitucional.

O julgamento de um ex-vice-presidente da República será um momento definidor da justiça angolana, como o foi, infelizmente no mau sentido, da justiça brasileira a propósito do ex-presidente Lula da Silva, ou da justiça portuguesa (ainda pior) no que se refere ao ex-primeiro-ministro José Sócrates. Em Portugal, até parece que a justiça anda a brincar com os grandes processos e está em pior estado que em Angola.

Seria bem interessante que o poder político encarasse como absolutamente necessário deixar de encarar a justiça como o “parente pobre” dos poderes do Estado e lhe desse a atenção necessária.

Nesse sentido, deixamos aqui um conjunto de dez propostas do Maka Angola, que poderia constituir a base de uma reforma efectiva da justiça angolana, apelando a que cada um faça a sua apreciação:

  1. Reformulação dos cursos do INEJ no sentido da maior abertura e pluralidade de técnicas, designadamente introduzindo temas de economia, finanças e psicologia, bem como abrindo a porta a jurisdições africanas próximas, como o Botswana ou a Namíbia, abandonando o paradigma pós-colonial português.
  2. Simplificação da legislação existente, designadamente, processual. Garantindo os direitos básicos das partes, há que eliminar formalismos e burocracias nos processos judiciais. O direito processual não é uma ciência.
  3. Introdução de mecanismos de direito premial que permitam resolver os grandes processos criminais de forma célere e justa.
  4. Diminuição da cascata de recursos dilatórios que torna a justiça inoperante. Estabelecimento do Tribunal da Relação como última instância de recurso ordinário. Tribunal Supremo e Tribunal Constitucional apenas para recursos extraordinários e de definição do direito. Fim dos foros privilegiados no Tribunal Supremo, admitindo raríssimas excepções.
  5. Criação, em parceria com a Ordem dos Advogados, de um corpo de defensores de justiça encarregado de defender os arguidos sem posses, de verificar as condições nas cadeias e de solicitar a libertação dos presos preventivos quando ultrapassado o prazo legal.
  6. Subida acentuada da remuneração dos juízes e garantia da intangibilidade dessa remuneração. Fim dos benefícios externos.
  7. Actualização sistemática do Código Civil.
  8. Estabelecimento de um organismo independente de gestão e auditoria dos tribunais que tenha como função principal assegurar que não faltam as condições físicas e de material básicas: papel, tinta para impressoras, casas de banho funcionais, etc.
  9. Sujeição de todas as nomeações que o presidente da República faz no poder judicial a audição e confirmação na Assembleia Nacional, tal como acontece na Constituição dos Estados Unidos da América. 10. Revisão da constituição do Conselho Superior da Magistratura, com introdução de elementos externos à profissão.

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