O RASTO DA CORRUPÇÃO E A FORTUNA INVISÍVEL DO EX-DITADOR JES
José Eduardo dos Santos foi classificado, em 2012, como um dos cinco piores líderes de África: A corrupção é uma palavra que deixa rasto na hora de analisar os 38 anos durante os quais Zedu governou Angola.
Em surdina dizia-se que era dono de uma fortuna imensa. Um site sul-africano, o Sunday World, chegou a escrever que Zedu tinha acumulado um património avaliado em 18,5 mil milhões de euros.
O exercício de identificar esta riqueza, todavia, é impossível. À excepção da vivenda com piscina de Barcelona, situada perto da encosta Collserolaé, no bairro de Pedralbes, uma casa cujo anterior proprietário foi Jordi Pujol i Ferrusola, detido em 2017 por suspeitas de ter desviado várias dezenas de milhões de euros, não se conheciam extravagâncias ou outros bens do antigo Presidente, nem mesmo em Portugal, onde a esmagadora maioria da elite angolana investiu, incluindo as filhas Isabel e Tchizé dos Santos. O comedimento de Zedu não foi herdado pela maioria dos seus filhos, Por exemplo, em 2017, o seu filho Eduane Danilo dos Santos, à altura com 25 anos e sem emprego conhecido, comprou um relógio por 500 mil euros num leilão contra a sida em Cannes, um momento registado em vídeo.
A realidade é que Eduardo dos Santos terá distribuído prendas por toda a família, em particular pelos filhos, amigos fiéis e aliados de circunstância, sendo essa uma característica que lhe permitiu prolongar-se no poder. O paradeiro da sua eventual fortuna é um segredo muito bem guardado. “A longevidade de José Eduardo dos Santos relaciona-se, em parte, com a capacidade de nunca esquecer os interesses de diferentes bases de apoio da elite e de os satisfazer, sem haver espaço para dúvida sobre quem detém o controlo”, afirma Ricardo Soares de Oliveira, no livro Magnífica e Miserável – Angola desde a Guerra Civil. Isso mesmo já tinha sido notado pela revista The Economist, em 2008, quando descreveu Eduardo dos Santos como “o centro de uma rede de clientelismo que lhe permite apaziguar os conflitos de interesses e reforçar a sua posição”.
O jornalista nigeriano Mfonobong Nsehe, num artigo publicado na revista Forbes em fevereiro de 2012, elegeu-o com um dos cinco piores líderes de África. “Em vez de transformar o boom económico de Angola em alívio social para o seu povo, canalizou as suas energias para intimidar os media locais e desviar os fundos do Estado para as suas contas pessoais e familiares. A família de Dos Santos controla uma grande parte da economia angolana.”
A opulência das elites começou a ser notória em 2002, após o fim da guerra civil. Os gastos militares pararam, libertando liquidez nos cofres do Estado. Para compor ainda melhor a situação, o elevado preço do petróleo ajudava a engordar as receitas. A finalizar o ramalhete, o esforço de reconstrução nacional e a súbita disponibilidade da China para financiar o Estado angolano, criaram condições para transformar a corrupção numa prática quase institucional. Em Angola, as empresas estrangeiras só conseguem contratos ou encomendas em troca de “gasosa” (suborno), e muitas vezes têm de aceitar accionistas angolanos que não são mais do que “facilitadores”.
Neste contexto começaram a surgir muitos investimentos no estrangeiro, sobretudo em Portugal, que por esta altura aceitou o dinheiro angolano sem questionar a sua proveniência. As relações institucionais entre os dois países eram sólidas e parecia ter ficado para trás o incidente de 14 de novembro de 2001, quando um jogo de futebol entre as selecções de Portugal e Angola acabou aos 67 minutos, depois de quatro futebolistas angolanos terem sido expulsos e de um quinto ter simulado uma lesão para terminar o encontro.
O resultado estava em 3-1 para Portugal, mas a memória que se guarda desse tempo é a do “jogo da porrada” marcado por “cenas caóticas”. Os anos seguintes foram assinalados por muitos investimentos angolanos em Portugal, protagonizados pela Sonangol dirigida por Manuel Vicente, Isabel dos Santos, Álvaro Sobrinho e muitos outros. E perante as reticências de alguns sectores da sociedade relativas à proveniência do dinheiro, os governantes nacionais, de Cavaco Silva a Passos Coelho passando por José Sócrates, nunca se cansaram de referir que os capitais angolanos eram “bem-vindos”. Durante muitos anos, as lojas de luxo da avenida da Liberdade tiveram como principais clientes personalidades da elite angolana para as quais os preços não eram obstáculo. Até que os “Luanda Leaks”, divulgados em janeiro de 2020, deitaram por terra a reputação de Isabel dos Santos e tornaram todos os investimentos angolanos suspeitos.
No Maka Angola, site dirigido pelo activista Rafael Marques, este 2 de julho faz-se um balanço da actividade do ex-Presidente num artigo não assinado. “A herança política de José Eduardo dos Santos é a da pilhagem e do sequestro de um país, vergado aos interesses de uma oligarquia por ele criada. Levará bastante tempo para Angola se libertar dessa pesada herança de corrupção e destruição moral de toda uma sociedade, dos angolanos em geral.”
A corrupção, sussurrada na era de José Eduardo dos Santos, foi assumida por João Lourenço, que jura querer por cobro a esta prática. Em junho deste ano, Eduarda Serra, directora do Serviço Nacional de Recuperação de Capitais, dizia que o Estado angolano estima recuperar, nos próximos cinco anos, cerca de 50 mil milhões de dólares retirados ilicitamente do erário público e que até agora foram recuperados pouco mais de 5 mil milhões.
“José Eduardo dos Santos poderia ter deixado como herança um país próspero e orgulhoso. Deixou uma derrocada confusa em desagregação. Não há imortalidade que lhe advenha. Aliás, outro legado funesto de JES é a desunião: o cultivo da intriga, da divisão, da permanente, embora disfarçada, guerrilha. Não houve sequer uma definição do bem comum, muito menos a busca desse bem comum.
É tempo de modificar essa cultura. Onde há desunião, que venha a união; onde há ódio, que venha a concórdia. Nesse sentido, cabe ao Estado angolano promover, com honra e dignidade, o último adeus ao homem que marcou profundamente gerações de angolanos com os seus 38 anos de poder. Que esse momento sirva para os angolanos reflectirem sobre o tipo de liderança que merecem e porquê.”
Angola é uma sociedade extremada. Existe uma elite muito rica e 41% da população tem um nível de consumo abaixo da linha da pobreza. E esta foi também uma herança deixada por José Eduardo dos Santos. SÁBADO