“O ESCRITOR DEVE SER RECONHECIDO PELA QUALIDADE DO QUE PRODUZ”

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Luanda – Maria Celestina Fernandes (nascida em 1945) é uma autora com obra sólida e reputação firmada no âmbito da literatura infanto-juvenil, com vários dos seus livros traduzidos e a merecerem estudos universitários em Angola e no estrangeiro.

A Professora Inocência Mata, especialista em literaturas em língua portuguesa,  considera a sua obra “incontornável no espaço da língua portuguesa” quando se fala de literatura infanto-juvenil. O seu livro “A árvore dos gingongos” foi distinguido com o selo Altamente Recomendável pela Fundação Nacional do Livro para a Infância e Juventude do Brasil.

Como prova da sua versatilidade escreveu poemas para crianças e abalançou-se para a escrita do romance, tendo nesse domínio publicado “Os panos brancos” (UEA, 2004), “A Muxiluanda” (Chá de Caxinde, 2008) e “Os Padrinhos da Nazarena” (Texto Editores, 2018). Apesar desse percurso meritório Maria Celestina Fernandes considera-se discriminada pelo facto de ser mulher. “Que o machismo ainda impera na nossa sociedade é uma realidade que não se pode ignorar. Com tudo quanto já produzi e os aportes que dei à literatura para as crianças, e não só, em prol da cultura, talvez já devesse, sim, ter mais reconhecimento”, afirma, acrescentando que “o escritor deve ser reconhecido pela qualidade do que produz e não por muito falar e aparecer”


COMO SE TORNOU ESCRITORA?

O prazer da leitura, que adquiri desde muito nova e transmiti aos meus filhos através do contar histórias, ler para eles e com eles, pode ter incentivado o abalançar-me na escrita, pois foi precisamente para os filhos que escrevi os primeiros contos.

O FACTO DE TER SIDO ASSISTENTE SOCIAL TERÁ CONTRIBUÍDO PARA A SUA PARTICULAR INCLINAÇÃO PARA A LITERATURA INFANTO-JUVENIL?

Como disse, foi a partir da ideia de escrever para os filhos que teve início a minha trajectória literária. Talvez a maternidade seja o principal leitmotiv e não o facto de ser Assistente Social, uma vez que estes profissionais não trabalham especificamente com crianças, mas podem, sim, coordenar o trabalho dos educadores de infância. Como tal, enquanto responsável pela área social do Banco Nacional de Angola, criei e dirigi o Centro Infantil para os filhos dos trabalhadores da instituição, incentivando bastante o hábito da leitura a todos os níveis.

QUAIS SÃO OS AUTORES QUE CONSIDERA DECISIVOS NA SUA FORMAÇÃO LITERÁRIA?

Como qualquer criança do meu tempo, comecei por ler os autores clássicos da literatura infantil ocidental Hans Christian Andersen, Perrault, os irmãos Grimm e outros. Mais crescida fomos lendo outros autores como José Mauro de Vasconcelos, autor de célebre obra “O meu pé de laranja lima”, Antoine de Saint-Exupery, autor de “O principezinho”, livros que continuo a ler sempre com o mesmo encanto. Passámos depois a ler os clássicos da literatura portuguesa e de outras paragens, algumas daquelas obras faziam parte do curriculum escolar, pelo que eram de leitura obrigatória. Lamentavelmente por cá ainda não temos instituído o plano nacional de leitura, pelo que não há livros seleccionados para leitura nas escolas. Como integrante da colectânea de escritoras dos oito países dos PALOP intitulada “Escrever histórias com a avó ao colo”, editada em Maio do ano  transacto, foi com imensa satisfação que recebemos a notícia que o livro já faz parte do PNL das escolas portuguesas. Prosseguindo, com a independência passámos a conhecer e a inspirarmo-nos nas obras de Agostinho Neto, António Jacinto, Pepetela, Boaventura Cardoso, Manuel Rui, Raul David e outros. E a leitura continua fazendo parte das necessidades, tornou-se um hobby vital, tal como a escrita.

FEZ PARTE DE ALGUM MOVIMENTO LITERÁRIO? PERTENCEU À BRIGADA JOVEM DE LITERATURA?

Nunca pertenci à Brigada Jovem de Literatura. Sou membro da União dos Escritores Angolanos, da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde e recentemente da Associação Kutanga ya Henda, cujo escopo é a promoção do livro e incentivo à leitura junto de crianças carenciadas, uma brilhante iniciativa da escritora Sandra Poulson.

A PROFESSORA INOCÊNCIA MATA CONSIDERA A SUA OBRA “INCONTORNÁVEL NO ESPAÇO DA LÍNGUA PORTUGUESA” QUANDO SE FALA DE LITERATURA INFANTO-JUVENIL. SENTE QUE EM ANGOLA A SUA OBRA É DEVIDAMENTE VALORIZADA E ESTUDADA?

Já escrevo há mais de três décadas, tenho mais de duas dezenas de publicações não só em Angola e, estranhamente, ainda hoje há no país muita gente que diz nunca ter ouvido falar da escritora Maria Celestina Fernandes, constatámos esta realidade quando participámos em actividades culturais nas escolas e não só, aliás o mesmo acontece com outros escritores… Entretanto, de fora surgem convites para participar em foros internacionais e pedidos para estudos de obras, o que é bastante reconfortante. Reconheço que não sou uma pessoa propensa a grande exposição mediática, mas o escritor deve ser reconhecido pela qualidade do que produz e não por muito falar e aparecer. É necessário maior divulgação das obras por parte dos editores, não só no momento do lançamento do livro. A crítica literária também faz imensa falta…

ALÉM DE ESCREVER CONTOS INFANTO-JUVENIS MARIA CELESTINA FERNANDES É CONSIDERADA PIONEIRA DA POESIA INFANTO-JUVENIL EM ANGOLA… 

Sim, para além de contos, tenho alguns livros de poesia dedicados aos mais novos, infelizmente esgotaram e não foram reeditados. A falta de reedição das obras é outro handicap  do mercado livreiro, porque as obras acabam por ficar limitadas ao momento e desconhecias de outros leitores. A ideia de escrever poesia surgiu para colmatar uma lacuna que se fazia sentir, havia muito pouco nesse género literário. Quando lancei o primeiro, intitulado a “Estrela que sorri”, prefaciado pela professora brasileira Laura Padilha, lembro-me de uma confrade me ter questionado se havia poesia especificamente para crianças!? Eu cresci a ler poesia infantil e até decorava, os livros da primária dedicavam muito espaço à poesia.

“OS PANOS BRANCOS”, PUBLICADO EM 2004, É O SEU PRIMEIRO ROMANCE. O QUE A LEVOU A ENVEREDAR POR ESTE GÉNERO LITERÁRIO? ERA UMA FORMA DE EXPRIMIR O QUE ENTÃO LHE IA NA ALMA?

Costumo dizer que o romance apareceu como uma extensão do conto. Comecei escrevendo contos infantis, seguiram-se contos para adultos e daí o romance que, sem dúvida requer maior esforço, disponibilidade de tempo, concentração, imaginação para urdir o enredo de modo a não perder a sequência e suspense para cativar e prender o leitor. A diferença que encontrei entre o conto e o romance foi o alongamento do texto, uma maior diversidade de personagens, situações e espaços. E deste modo vou exprimindo o que me cerca, o que vejo, ouço, sonho, enfim o que me vai na alma…

SÃO POUCAS AS MULHERES QUE ESCREVERAM ROMANCES. NA SUA OPINIÃO A QUE SE DEVERÁ ISSO?

Pela minha experiência, produzir um romance não é tarefa fácil, exige bastante do escritor, quantas dores de barriga senti no decorrer da escrita de “Os panos brancos”, “A muxiluanda” e “Os padrinhos da Nazarena”. Houve momentos em que a imaginação escusava-se e era obrigada a parar a ficção a fim de ganhar fôlego, mas nestas fases o trabalho persegue e há que arranjar coragem para prosseguir até encontrar o fim, um final que à partida nunca sei qual será. Talvez por estas razões ainda não tenhamos muitas mais confrades a escrever romances, não sei. Elas melhor dirão. Quanto à Rosária da Silva, é pena ter ficado só pelo livro “Totonya”.

“PELO QUE PRODUZI, SE FOSSE HOMEM JÁ ESTARIA NUM OUTRO PATAMAR”. ESSA AFIRMAÇÃO É SUA, PUBLICADA ALGURES. ACHA QUE EXISTE NOS MEIOS LITERÁRIOS, ACADÉMICOS E DA COMUNICAÇÃO SOCIAL EM ANGOLA UM PRECONCEITO ENRAIZADO CONTRA A MULHER ARTISTA E, EM PARTICULAR, ESCRITORA?

Que o machismo ainda impera na nossa sociedade é uma realidade que não se pode ignorar. Eu já não me lembro de quando, nem em que contexto fiz a afirmação, mas reitero que com tudo quanto já produzi e os aportes que dei à literatura para as crianças, e não só, em prol da cultura, talvez já devesse, sim, ter mais reconhecimento. Pois, mesmo nos momentos em que a literatura infanto-juvenil parecia sucumbir, nunca deixamos de escrever e procurar meios para publicar e divulgar as obras no seio dos nossos pequenos, onde quer que fôssemos. O extinto Dario de Melo dizia que eu e a escritora Cremilda Lima éramos as teimosas…

ENQUANTO ESCRITORA E CIDADÃ, QUANDO OLHA PARA O PAÍS O QUE É QUE MAIS A PREOCUPA?

Para além de muitas coisas que me preocupam quando olho para o país, destaco o futuro das nossas crianças. Quando passo pelas ruas e me deparo com o triste cenário dos meninos e meninas de rua e na rua, cada vez em maior número, isto é deveras preocupante. Aquelas crianças têm de estar protegidas no seio da família ou em instituições vocacionadas. Diz o slogan: À criança dá tudo o que ela merece, criança é o futuro da nação e aí por diante, sobretudo no mês de Junho. Assim desse jeito? Que futuro? Nem a mãe que sai  à  rua cedo pela manhã, deixando os filhos ao deus dará ou expondo-os ainda bebés ao sol, chuva e vento enquanto zunga, nem qualquer família carenciada tem o direito de utilizar as crianças como meio para resolver suas carências, frustrações e situação de pobreza. Os pais que emprestam os filhos para alguém os levar à rua para pedir esmolas, e depois repartirem as migalhas, deviam ser severamente sancionados pelas autoridades, retirando-lhes a tutela. Não há auguro de futuro condigno para criança que não têm família condigna, um tecto, pão, saúde, escola e acesso ao livro e demais direitos a que humana e legitimamente lhe são devidos. E estas crianças desprotegidas constituem a maioria, pelo que deveriam ser a grande preocupação do Estado e de toda a sociedade.

BIOGRAFIA

Maria Celestina Fernandes nasceu no Lubango, província da Huíla. É Assistente Social e licenciada em Direito pela Universidade Agostinho Neto. Membro da União dos Escritores Angolanos e da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde. Tem obras publicadas em prosa e poesia, com destaque para a literatura infantil e juvenil. Foi-lhe outorgado pelo Ministério da Cultura o Diploma de Mérito pelo seu contributo à cultura nacional.

A obra “A árvore dos gingongos”, que faz parte dos Onze Clássicos da Literatura Infantil Angolana, foi distinguida em 2009 com o selo Altamente Recomendável pela FNLIJ – Fundação Nacional do Livro para a Infância e Juventude do Brasil.

Tem participações em antologias e encontros literários nacionais e estrangeiros. Nomeações para o prémio sueco Astrid Lindgren. Venceu os concursos literários Chá de Caxinde do Conto e Jardim do Livro. Recebeu em 2019 o Globos de Ouro Angola na categoria literatura. O livro infanto-juvenil “Kambas para Sempre”, editado no Brasil e em Angola, cuja temática é o preconceito racial, está entre os dez livros seleccionados pela TVCultura do Brasil. Algumas das suas obras foram traduzidas para inglês, sueco, italiano, coreano e árabe. 

OS PANOS BRANCOS

“Kota, minha kota, deve ser desta forma carinhosa que os meus irmãos tratam hoje a mãe, se ela ainda estiver viva…

Essa ideia acudia frequentemente ao pensamento de Glorinha, a partir de determinada altura da sua vida. Na verdade, ela já não conseguia ter presente a imagem precisa da mãe, do padrasto e muito menos dos irmãos.

Glorinha tinha apenas seis anos quando foi entregue aos cuidados de uma boa senhora, que a levou para fazer dela uma menina civilizada.

-Vai m’bora mesmo minha filha, vai para não ficar matumba aqui no quimbo e ninguém te abusar um dia – assim falou a mamã Cambundo Muhongo, no momento em que confiava à garota.

O rompimento precoce do cordão umbilical com a família e o meio deixou em Glorinha marcas profundas, que acompanharam em permanência o rumo da sua vida; mais acentuadamente em Portugal, para onde foi levada aos dez anos de idade.

Estranhamente, mesmo após tantos anos decorridos sobre a sua já bem distante meninice, a rapariga recordava, com certa precisão, alguns episódios vividos no curto espaço de tempo que lhe foi permitido permanecer na sanzala, em particular aqueles ligados ao rio, aonde se deslocava com a mãe, nomeadamente: a estreita e escorregadia ladeira de lama escura por onde as pessoas trilhavam cautelosamente em fila indiana; o capim alto, de manhã humedecido pelas gotas de orvalho, que ladeava o carreiro até ao rio; o rio propriamente, o sítio de trabalho da mãe, o local dos seus mais deliciosos sonhos da meninice e das divertidas brincadeiras com as outras crianças…

Ao capim, ela associava, sempre com bastante constrangimento, a cena da cobra ferida a estrebuchar furibunda, tentando escapar-se, enquanto as pessoas em grande algazarra procuravam esmagá-la à paulada, para deixarem-na completamente sem vida. Não fosse o bicho escapulir-se, entrar pelo mato adentro, recuperar forças e voltar a atacar, todos estavam plenamente convencidos de que era ela, a serpente de saliva venenosa, a causadora das mortes que ocorriam por lá. Depois de certificada a morte, o repelente animal ficou exposto nos galhos de uma árvore, para alívio geral. Esses e mais alguns poucos factos da sanzala permaneceram, de facto, gravados na sua mente e com eles sonhava amiudadamente.

Glorinha acompanhou a lavadeira mamã Cambundo naquelas caminhadas desde a mais tenra idade. Ela era a filha mais velha.

Todos os dias, excepto aos sábados e domingos, a mãe agarrava nela cedo pela manhã, amarrava-a às costas e ambas seguiam para o rio, e no rio, onde ela chegava sempre a dormir, a mamã desatava o pano, estendia-o no capim rasteiro e nele a deitava, ao abrigo da sombra de um arbusto.

Cambundo passava grande parte do tempo dentro da água e, enquanto lavava a roupa, a pequena era vigiada por uma priminha e pelos pequenos que acompanhavam também as outras lavadeiras. Ela só voltava às costas quando chorasse demasiado, nos intervalos das mamadas. De resto, eram praticamente estas as únicas paragens de trabalho de Cambundo, para além da pausa do mata-bicho, por volta do meio-dia. Antes disso, dejejuava com a cola e o gengibre que reservava na pontinha de um pano – rotineiramente ela atirava os pedacinhos à boca, mascava-os por certo tempo e por fim deglutia com ajuda de água da cabaça.

Quando Glorinha começou a comer, à hora do almoço, a mãe confeccionava matete de fuba de bombó, na panelinha de barro que fazia parte das bikuatas Começaram a dar-lhe as papas antes de completar o primeiro mês. Ela chorava demasiado, diziam as mais velhas que era de fome, porque o leite da chucha era fraco, assim sendo, havia necessidade de reforçar a alimentação. O certo é que era tiro e queda! Enquanto comia, Glorinha transpirava que transpirava e de seguida caía num sono profundo, deixando a mãe trabalhar à vontade por um bom tempo.

Mama Cambundo preparava então, para ela própria, a pequena refeição, que se reduzia a uma latinha de café e bombó fresco assado na lenha. O bombó era feito no próprio local, com a mandioca arrancada da lavra próxima do rio, depois de descascada, ensacada e deixada amolecer na margem.

Aquela primeira refeição do dia era acompanhada e por vezes partilhada com as companheiras a quem faltava qualquer dos componentes, geralmente o açúcar, o que também lhe sucedia.

Todas elas paravam àquela hora. Havia entre aquelas mulheres, concentradas ali na lavandaria colectiva do rio, um verdadeiro espírito de inter-ajuda e solidariedade e também uma certa cumplicidade face à sua condição de seres submissos, duplamente explorados. Exploração por parte do homem negro com quem dormiam, para quem pariam muitos filhos e trabalhavam, muitas vezes desrespeitadas, maltratadas, atraiçoadas, enganadas, exigindo delas todo o tipo de sacrifícios; e do outro lado da barricada, da parte do homem branco, o colonizador e explorador comum, por quem eram humilhantemente utilizadas, ridicularizadas, a quem deviam obediência e servilismo, sendo forçadas a dar o melhor de si, sem nada receber em troca.

Aos três anos, Glorinha recebeu o segundo irmão e para além de brincar com as bonecas de sapupo e de trapo, saltitar de pedra em pedra e banhar-se no rio, tinha a tarefa de vigiar o bebé enquanto a mãe, dentro do rio, com o pano a tapar-lhe o corpo a partir dos seios, cerrado na anca com a tira vermelha da indumentária de bessangana, lavava as peças de roupa dos patrões e as farpelas da família.

Com efeito, só através dessas imagens, que nunca lhe fugiram da mente, ela conseguia reviver tenuemente o passado e manter vivo o laço com a terra que a vira nascer.

E foi a partir do rio que nasceu o grande fascínio de Glorinha pelos panos brancos dos brancos, que a mãe carregava nas pesadas trouxas que transportava à cabeça.”

Excerto do romance “Os panos brancos” de Maria Celestina Fernandes, UEA, 2004.

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